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sábado, 1 de abril de 2017

#8 - RoofCulture: Parkour ou não? Fazer ou não fazer?

Recentemente têm acontecido uma eclosão de discussões sobre a questão do “roof culture” em alguns grupos de conversa, postagens e comunidades de praticantes de parkour. Este tema foi evidenciado graças a acontecimentos recentes que vieram à tona com a participação de alguns praticantes envolvidos em invasões em vídeos, apreensões, o triste episódio do enxadrista Russo que faleceu depois de cair de um prédio de 12 andares e volta e meia rola alguma notícia que traga á tona esse tema. O tratamento esdrúxulo e superficial da mídia para com o assunto me deu uma revolta tão grande (não só com a mídia em si, mas falarei disso mais tarde) que resolvi abordar o tema com a complexidade e aprofundamento que ele merece.

Então se você está com pressa, sem tempo para ler agora ou não está com paciência para isso neste momento, salve este link pra mais tarde, pois vou tentar me aprofundar da forma mais complexa que eu conseguir nesse assunto (e talvez nem assim consiga abordá-lo completamente). Tentarei ser o mais direto possível para não parecer difuso, mas de qualquer forma, você provavelmente vai gastar (ou ganhar) um bom tempo lendo esse texto (se chegar até o final).

Então, vamos lá, vamos tentar entender um pouco dessa nova cultura de telhados...

Mas espera um pouco... Nova? Quer dizer que isso não existia antes?
Bom, pra contextualizar um pouco e tentar acabar um pouco com esta confusão de termos (principalmente pra quem não é do “mundo” do parkour) vou explicar brevemente do que se trata o tal do Roof Culture.

É sabido que o parkour consiste em uma preparação física e mental do corpo para lidar com obstáculos no ambiente circundante. É sabido, também, que com o desenvolvimento destes aspectos são poucos os limites físicos que efetivamente consigam nos brecar diante de um caminho. Também, que o traceur é alguém treinado para encontrar formas para lidar com esses limites. É literalmente a arte de encontrar caminhos em meio ao ambiente, superando qualquer obstáculo neste percurso, independente de qual seja.
Além disso, também é usual integrarmos ao treinamento movimentações furtivas e silenciosas. Formas de se deslocar com leveza, fluência e velocidade sem produzir barulhos, excessos ou gasto desnecessário de energia.
Grande parte da prática é composta por desafios auto impostos. É fundamental que o praticante saiba identifica-los e que isto, de fato, seja algo desafiador (AVÁ). Com o passar dos anos de treinamento e aperfeiçoamento não é incomum que os praticantes olhem para a arquitetura em volta e identifiquem desafios maiores que gostariam de tentar, como um salto de uma laje para a outra em grandes alturas... ou uma travessia contornando uma construção por fora... ou simplesmente o desafio de cortar um caminho pelos telhados no estilo homem aranha sem ser percebido.
Claro que isso não seria bem visto pela sociedade, que já é acostumada com a violência e com a probabilidade de alguém mal-intencionado invadir a sua casa.
Porém isso não vai travar um bando de jovens procurando aventura e instigados pelas descargas hormonais que uma situação de risco traz... na verdade quanto maior o risco, melhor. Então desde sempre em algumas ocasiões os praticantes se reúnem (ou fazem sozinhos mesmo) para tentar realizar estes desafios de forma rápida e silenciosa. Estes desafios podem ser inúmeros... desde simplesmente subir em uma laje aleatória pra tentar alguma movimentação no alto até invasões em grandes fábricas que ofereçam diversas possibilidades de obstáculos, forçando o praticante a se adaptar rápido na situação, explorar rapidamente o lugar e sair sem ser pego pelo guarda... enfim... as possibilidades para estes desafios são infinitas. Como essa situação requer um certo nível de “invisibilidade”, horários com pouca luz são mais propícios... então isso costuma acontecer á noite. Por essa razão dava-se o nome a esse tipo de desafio de “Night Mission” (Missão noturna).
Isso acontece desde as origens do parkour... desde sua fundação original, e provavelmente deve ter sido um aspecto crucial para a evolução da mentalidade dos fundadores quando estavam desenvolvendo seu espírito de grupo e toda a filosofia que estruturaria a prática futuramente. A própria Parkour Generations reconhece isso.
“[...]A ‘Night Mission’ deriva de uma forma de treinamento onde os praticantes treinam durante toda a noite, aproveitando a cidade vazia para explorar e desafiar a si mesmos por um longo período de tempo. Especialmente os fundadores de parkour costumavam treinar regularmente assim[...]”  (http://parkourgenerations.com/night-mission-a-look-back/)
Com a disseminação do parkour pelo mundo é natural que esse desafio fosse perpetuado como uma tradição. Não tenho conhecimento se alguém chegou a escrever um ‘manual de regras do night mission’ (Se houver, me mandem, por favor) mas essa tradição era passada adiante como algo que essencialmente não deveria ser registrada. Por ser algo que se trata de furtividade, e principalmente, por estarmos entrando em locais proibidos (grande parte das vezes) a coisa toda deveria ser feita com um altíssimo nível de bom senso para não prejudicar o local o qual estivéssemos entrando, as pessoas responsáveis por este local e a nós mesmos. Por esse motivo tínhamos esse certo cuidado de não filmar nem fotografar esses desafios. Era simplesmente entrar, explorar e sair sem que ninguém percebesse.
Em meados de 2014 um grande grupo (equipe/crew, como queira chamar) de parkour, a Storror, publicou um vídeo divulgando o termo “Roof Culture”, onde eles se utilizavam basicamente da mesma prática porém com uma produção (linda) por trás. Junto com o vídeo vinha a seguinte descrição: “Dois anos na tomada, nenhuma permissão concedida. Este projeto segue um grupo de jovens renegados em uma aventura contra a multidão e com o desejo de lançar luz sobre uma perspectiva e abordagem diferente para a vida ... Esta é a cultura do telhado (Roof Culture).” (Segue o link para o vídeo original https://www.youtube.com/watch?v=o16CcUauSYA ).
O alcance dos caras foi bizarro e o termo viralizou de forma absurda. Mesmo isso não sendo algo novo, a “nova cara” das night missions veio com uma nova abordagem tentadora e desafiadora para os praticantes que eram incentivados a “juntar-se a cultura”.
Essa forma de desafio vem sido perpetuada de geração para geração dos praticantes de Parkour tanto inter quanto nacionalmente, e com a divulgação do vídeo dos caras da Storror o termo ‘Roof culture’ foi amplamente adotado.
Eu vou utilizar durante esse texto o termo “roof culture” simplesmente por ser a forma mais atual de se dirigir a esse tipo de abordagem, mas não vejo qualquer diferença significativa da idéia das “night missons” que aconteciam muito antes da disseminação dos Storror’s boys. (Caso haja alguma diferença na filosofia dos dois termos, fico aberto aqui a corrigir isso, porém eu não encontrei nada a respeito... De qualquer forma a prática é basicamente a mesma, então isso é irrelevante para o desenvolvimento da ideia a seguir).
A grande problematização a respeito do assunto parte das seguintes questões:

“Roof Culture é Parkour?”
 “é certo praticar o Roofculture?”
Bom.... pra responder a primeira pergunta é necessário que você leia antes este texto.
Sinto informar os fundamentalistas e românticos de plantão... mas sim, pode ser sim.
Como já dito anteriormente, o conceito de subir em locais proibidos e se desafiar sem nas alturas das construções enquanto tenta não ser visto, existe na mentalidade dos praticantes muito antes de você sequer pensar em começar a treinar. Além disso, se a pessoa identifica na sua prática a possibilidade de subir em telhados alheios, fazer invasões e desafios nas alturas de propriedades privadas, então aquilo continua sendo uma expressão dos conceitos que, naquela concepção, formam a idéia do que é Parkour na interpretação daquela pessoa.
E o contrário também pode ser verdade, pode ser que a pessoa suba nos telhados só pra tirar fotos e fazer videos e não considere aquilo Parkour... que considere a questão do Roofculture algo alheio á prática do parkour. Tudo depende de como o praticante está vendo e entendendo aquilo que ele está vivendo.
Já ouvi tanta gente falar que quadrupejar por 400 metros é parkour, que fazer flexões quando alguém grita “10” é parkour, que ajudar uma senhora a atravessar a rua é parkour... porque escalar um prédio não seria? Ainda mais considerando que isso sempre foi feito pelos praticantes de parkour, mesmo antes disso ser amplamente divulgado.
Não cabe a você ponderar sobre o que é ou não o parkour de outro praticante. Apenas a própria pessoa pode fazer isso sobre as suas respectivas razões, motivações e concepções. O máximo que você pode fazer é argumentar com ela sobre a sua conceituação do que é parkour, caso você tenha bons argumentos e esta pessoa considere-os válidos, ela mesma mudará seu olhar sobre suas próprias atitudes. Mas isso deve partir unicamente dela.
De qualquer forma, existe sim a possibilidade da pessoa integrar o roofcult como parte da sua concepção de parkour.
PORÉM....
Não é por isso que a prática do Roofculture se torne boa ou algo que deva ser incentivada. O simples fato de isso poder ser considerado como parkour não o torna automaticamente justificável ou certo. O que me leva a última parte da reflexão... e a segunda pergunta.

“é certo praticar o Roofculture?”

Bom, eu tenho a minha opinião formada sobre isso. Mas sei que existem pontos levantados de ambos os lados que de forma geral dividem os praticantes... Eu vou tentar me manter o mais neutro possível e analisar alguns argumentos “pró” e “contra” se praticar a cultura de telhado. Acredito que seja mais coerente apresentar ambos argumentos ao invés de cuspir as minhas opiniões aqui como regra.

Argumentos Pró
-O nível de auto-desafio é verdadeiramente alto.

-O fator “ilegal” torna a coisa toda bem tensa, o que coloca o sua capacidade de reagir em uma situação adversa á prova na prática.

-Os fundadores se utilizavam de invasões pra treinar também

-Nós não incomodamos ninguém, só entramos e saímos sem ninguém perceber.

-Eu não concordo com a lei, vai falar que você não baixa uns filmes piratas também?

-Se não fizermos desse jeito então não vamos poder treinar nos lugares que queremos

-Eu sou livre pra treinar onde eu quiser.

-Você só estará praticando parkour de verdade se se colocar á prova.

Antes de entrar no escopo real dos “argumentos contra” a prática eu gostaria de rebater os argumentos que eu sinceramente considero incoerentes vindo daqueles que se consideram a favor e também evidenciar aqueles que eu julgo coerentes.

“-O nível de auto-desafio é verdadeiramente alto.”
Sim, de fato é. Quem já praticou sabe o quanto é desafiadora a idéia de se movimentar no “modo stealth”. Bem diferente de se treinar em lugares públicos.

“-O fator “ilegal” torna a coisa toda bem tensa, o que coloca o sua capacidade de reagir em uma situação adversa á prova na prática.”
Também vou ter que concordar com isso. Se colocar numa situação de perigo real trabalha capacidades de agir com altas descargas de adrenalina de uma forma bem interessante. Algo que também é bem diferente de treinar em lugares onde você não ligaria de ser visto ou poderia tentar 2, 3 ou mais vezes. E essa experiência tem a capacidade de trabalhar seu auto controle de uma forma que dificilmente seria trabalhada em uma situação mais controlada ou ‘legal’.

“-Os fundadores se utilizavam de invasões pra treinar também”
Este é um ponto que considero completamente fraco. E pra isso vou utilizar uma reflexão que provavelmente sua mãe já usou muito com você. – “Se os fundadores comessem cocô você também comeria?” O simples fato dos criadores terem feito esse tipo de coisa não é um bom argumento para fazer também. Os fundadores do Parkour no início do desenvolvimento da prática eram jovens, inseridos em localidades hostis, sem opção de lazer, que tentavam encontrar nos seus bairros desafios para ocuparem seu tempo, tornarem-se mais fortes e não entrarem no mundo da violência que tomava conta dos subúrbios onde viviam. Não haviam clubes, academias e projetos sociais onde eles pudessem fazer isso. Era uma outra realidade, um outro contexto. Além disso, eu não saberia dizer como era o ambiente socio-cultural do local na época em que os fundadores costumavam praticar, mas durante o documentário ‘Geração Yamakasi’ o Designer Urbano Elio Conen Boulakia explica como foi feita a distribuição urbana dos bairros periféricos de Paris, como a idéia era de criar um lugar onde as pessoas pudessem viver, trabalhar e encontrar lazer e cultura aonde moravam, um espaço que visasse a diversidade social... várias pessoas de culturas diferentes compartilhando um mesmo espaço, crianças pobres e ricas vivendo no mesmo local... a idéia era de minimizar as diferenças de classes. O estado decidiu então que eles viveriam acima da estrada em lajes de concreto, pois para a arquitetura da época, isso era visto como algo bom ou positivo. Contudo as obras não foram terminadas por conta de uma forte crise da época e o máximo que fizeram foram conjuntos habitacionais, que só isolavam e excluíam as pessoas ainda mais. Ele fala sobre como as pessoas não queriam viver naquilo, e como isso afetou a identificação das pessoas em viverem em algo que de fato fosse delas, por conta de um constante sentimento de insegurança. Chama ainda a situação habitacional na região depois de 10 anos (época na qual o documentario foi gravado) de vergonhosa. Isso tudo obviamente refletia na criação de uma identidade das pessoas com os locais onde habitavam, e claro, os meninos da arte do deslocamento buscavam em meio aquela situação de desequilíbrio das pessoas com seus lares, buscar o lazer e os desafios que não tinham de outras formas. Afinal o estado nem sabia que eles existiam (ou não ligavam, não sei).
Você comparar isso com o cenário nacional do Parkour hoje é uma burrice. Hoje nós temos liberação pra treinar em espaços públicos, a atividade é cada vez mais reconhecida pelo estado e pela sociedade, temos até a criação de espaços construidos especificamente para a nossa prática. Algo completamente UTÓPICO na época da criação do Parkour. Então não use esse argumento, pois a sua realidade é COMPLETAMENTE diferente da realidade existente durante as fundações da prática. Você tem opções... os jovens daquela época não necessariamente. (também explicado no vídeo do Bruno Peixoto).

“-Nós não incomodamos ninguém, só entramos e saímos sem ninguém perceber.”
Será? Como você pode ter 100% de certeza que seu barulho não está incomodando ou assustando a pessoa que vive naquele local? Como você pode ter absoluta certeza de que não tem um senhor assustado te olhando da janela de seu apartamento mais a frente? Como você pode ter certeza que esse senhor não conhece alguém do prédio que você está subindo, que ligue para esta pessoa e deixe essa pessoa assustada dentro da própria casa? Tudo isso pelo simples luxo de fazer o que você quiser sem se preocupar se isso realmente desrespeita outras pessoas?
A verdade é que não dá pra saber se você está ou não sendo visto, e por mais cuidado que você tenha, sempre existe a chance de alguém se incomodar com a sua presença ali. Nem estou entrando no mérito do risco real de você se machucar na casa dos outros, porque isso é um problema seu. Mas além disso, você pode também machucar alguma pessoa que não saiba que você está ali, e passe pelo lugar sem que você a veja no momento de fazer um move... As chances de você achar que não está incomodando ninguém, mas na verdade estar são MUITO grandes simplesmente porque as variáveis e possibilidades são gigantescas.
Isso tudo tirando o fato de você estar em um lugar que não é seu. Um lugar sobre o qual não tem a liberação pra estar. Só isso já configura um desrespeito á propriedade alheia... então se você acha que invasão não é incomodar? Amigo, reveja seus conceitos, pois até onde eu consigo enxergar, desrespeito é uma forma de incomodar sim.

Isso sem falar nas pessoas que atualmente fazem isso justamente pra ganhar views e likes no youtube... o que claramente vai contra esse argumento de “não somos vistos”... essa galera QUER ser vista.

“-Eu não concordo com a lei, vai falar que você não baixa uns filmes piratas também?”
Bom, tenho que admitir que este é um argumento plausível, apesar de não concordar totalmente com a idéia por trás dele.
É fato que a existência de uma lei que proíba alguma determinada ação não necessariamente a configura como ‘certa’ ou ‘errada’. E não é necessariamente porque as coisas estão na lei que não devam ser questionadas.
Pra isso a humanidade desenvolveu ao longo da história um conceito chamado “Ética”. Que é justamente a capacidade de se refletir formas de se conviver melhor em sociedade. Importante dizer aqui que as reflexões éticas e morais só existem, porque existe também o conceito de liberdade. Liberdade que se define como a capacidade de um indivíduo agir como bem entender, de acordo com a própria vontade sem restrições externas (Este é um tema extremamente relevante pro Parkour e em breve farei um texto mais especifico sobre isso).
Cada pessoa tem liberdade para agir como bem entender, mas pelo bem da convivência em sociedade, nó buscamos nos organizar e pensar formas de conduta que não desrespeitem a vida e o espaço de outro indivíduo. A essa reflexão, damos o nome de ética. Nem sempre o que é anti-ético é contra a lei, e nem sempre o que está na lei é anti-ético.
Mas eu sinceramente não vejo como esse argumento conseguiria ter relevância... Afinal um erro nunca justificará outro erro, e o fato de alguém fazer algo errado não te dá o direito de fazer também. Então se sua idéia é baseada somente nisso, saiba que você não apresentou nenhum argumento consistente pra defender seu ponto... apenas está dizendo “Se todo mundo faz errado, eu também posso” e nem preciso dizer o quanto isso está moralmente equivocado.

“Se não fizermos desse jeito então não vamos poder treinar nos lugares que queremos/Eu sou livre pra treinar onde eu quiser.”
Bom tanto um quanto o outro argumento incorre no mesmo ponto. A questão do ‘querer’.
Esse argumento falha quando você começa a pensar que nem tudo que você quer, você pode e/ou deve fazer. Você colocar suas vontades pessoais acima dos valores sociais simplesmente para satisfazer o seu ego é uma arrogância bizarra. A isso damos o nome de ‘egocentrismo’, que por definição é “uma exaltação excessiva da própria personalidade, fazendo com que o indivíduo se sinta como o centro da atenção.” (https://www.significados.com.br/egocentrismo/). Obviamente essa não é uma conduta admirável em uma pessoa que preza por valores comunitários, então se você age como se sua vontade é maior do que o direito de outra pessoa (no caso, o direito à propriedade), desculpe, mas você não é só um moleque revoltadinho, deve ter algum transtorno sociopata, eu recomendaria sinceramente que você buscasse uma ajuda profissional pra se tratar. Se não for esse o caso, então você é só um mimadão mesmo que não tem maturidade para assumir as falácias e erros nas suas próprias atitudes. E se não tem a capacidade para respeitar o convívio em sociedade então talvez seja melhor reunir suas coisas e ir viver longe das pessoas, onde seus atos não incorram no desrespeito a propriedade de outrem.

Você só estará praticando parkour de verdade se se colocar á prova.”
Esse é o típico discurso de quem realmente não tem argumento nenhum para validar sua opinião. É a clássica falácia do escocês (deixarei links explicando melhor do que se trata) que consiste em uma desonestidade argumentativa de tentar deslegitimar um determinado aspecto de um indivíduo afirmando que “Os verdadeiros X não agem assim” ou “Se você não age assim, então não é um verdadeiro X.”. Como se existisse um ‘Parkour de verdade’ e um ‘Parkour de mentira’. Se você ouvir alguém falando algo do tipo, corra para as montanhas, pois esse é um exemplo clássico de um argumento de mentirinha utilizado por fundamentalistas para tentar passar a idéia de que sua ideologia é perfeita, livre de erros e construído só com pessoas que concordam com ele.  Não existe esse negócio de ‘Parkour de verdade’... existe Parkour, e inúmeras maneiras de interpretá-lo.

A verdade é que existem infinitas possibilidades dentro do Parkour. E a exploração em picos na altura do chão e em lugares permitidos pode ser tão incrível quanto uma exploração nas alturas... só é necessário criatividade. Claro que não excluo o fato de que existem variáveis nas invasões que são muito mais evidenciadas nessa situação do que nos treinos sem esse tipo de abordagem (como já disse antes), porém a nossa prática é tão polivalente, tão cheio de possibilidades... que essas variáveis são facilmente contornadas se você souber usar o ambiente e ser criativo, e se você acha que isso é mentira, vou deixar linkado aqui embaixo alguns vídeos que mostram o quanto um treino pode ser impressionante mesmo sem precisar subir em um lugar ilegal.
(
 https://www.youtube.com/watch?v=VafIjR4o-J0

Conclusão (?)

Enfim, o que quero dizer com tudo isso? Eu particularmente sou pró roof-culture? Sou contra?

A resposta pra essa pergunta é: Depende.
Eu sei que essas situações e esses desafios podem ensinar muito ao praticante. Sei também o quanto é incrível a sensação de se sentir completamente autônomo e livre dentro do espaço em que se vive, afinal, isso é o básico do Parkour, não é mesmo?
Sei também que um praticante sério, que tenha uma boa capacidade de reflexão e mantenha os valores da prática vivos dentro de si conseguem manter essa prática completamente controlada sem necessariamente lesar, incomodar ou assustar outra pessoa.
O trabalho duro, dedicação aos treinos, disciplina, foco, controle, consciência, respeito e bom senso levam, com o tempo, o praticante a se tornar extremamente experiente no que tange a questão de desafiar-se em níveis mais arriscados, e sei que essa progressão pode ser feita de uma forma segura.

Porém, é completamente diferente um praticante experiente, com anos de treino, vez ou outra, se desafiar em silêncio, por conta própria, ciente de todas as responsabilidades dos seus atos e pronto para assumi-las com honra e humildade caso algo dê errado, de um moleque sem experiência que quer subir no alto de um prédio para tirar fotos e fazer alguns vídeos no alto de um prédio só pra “ser radical”. São situações completamente diferentes entre si... e independente da situação é imprescindível sempre lembrar que: INVASÃO É CRIME!!! (Artigo 161 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940) e fere o Artigo 5º da constituição federal, que diz respeito ao direito sobre propriedade. Então sim... independente dos seus argumentos, invadir fere o direito de outra pessoa e isso incorre em um crime. Esteja consciente das suas escolhas e de suas consequências, e mais do que qualquer coisa, assuma sua responsabilidade sobre suas atitudes (isso é o mínimo).

E é aqui que eu quero apontar a principal crítica a respeito deste tema, e meus "argumentos contra".

Alguns praticantes que se julgam experientes tem cada vez mais agindo com irresponsabilidade. A prática da cultura de telhados é uma faca de dois legumes... Ao mesmo tempo que é interessante pros praticantes de parkour, também é interessante para não praticantes de parkour... e essas pessoas podem estar mal intencionadas. Ao pluralizar e democratizar essa situação, você dá a essa pessoa a condição de, ao ser pega em flagrante, se utilizar do argumento “estou apenas praticando parkour”. E fica muito difícil (pelas razões conceituais que já citei) afirmar se aquilo é ou não verdade.
Você que publica videos esperando por fama e views está dando ferramentas para pessoas mal intencionadas usarem, ás vezes, contra você mesmo. Acha que eu estou exagerando? Então dá uma olhada nessa notícia. (fonte: http://www.midiamax.com.br/policia/invade-residencias-comercio-alega-manobras-parkour-335987 ).





Além disso, você se torna o exemplo de muita molecada que vai achar que seguir o seu exemplo é o certo. Essas crianças não tem o mesmo preparo que você, e na cabeça delas, o que elas estão fazendo é Parkour. Assim como nos influenciamos em grande parte pelos videos que vimos na internet, seus videos também podem servir como referência pra outros. A responsabilidade sobre a influência que você causa em alguém é totalmente sua. Então se você acha legal ganhar view a troco de futilizar a prática dessa forma, então saiba que notícias como essa: https://www.facebook.com/cidadealertaes/videos/949740721803108/ , podem SIM ser responsabilidade sua, e não adianta tentar se isentar de culpa.

Enfim, o que eu concluo disso tudo é que:

- Roofculture é algo que chama sim muitos views e likes, porém eu não considero saudável e nem inteligente usar isso como foco para divulgar ou difundir o parkour.
- A cultura, na minha opinião, deve ser algo que, caso seja feita, deve ser apenas por praticantes experientes que tenham senso de responsabilidade e honra para arcar com as consequências de seus atos. E não por praticantes que só querem chamar a atenção, mesmo porque isso é extremamente arriscado.
- Caso o praticante ainda assim escolha fazer, os registros dessas situações devem ficar apenas com os envolvidos, e não popularizado para acesso irrestrito de qualquer pessoa que possa interpretar e se influenciar negativamente com aquilo.
- “Grandes poderes trazem grandes responsabilidades” e você “torna-se eternamente responsável por tudo aquilo que cativas”, portanto, tome cuidado com o tipo de informação e influência que você passa, e mais do que isso, com o exemplo de praticante que você é.
- É necessário que o praticante desenvolva capacidade e responsabilidade autocrítica para refletir sobre o que é coerente fazer com a sua prática e o que não é. E disso, o que é conveniente divulgar e o que não é.
- Todos os praticante tem (ou deveriam ter) a responsabilidade de representar a prática de uma forma positiva, contribuindo para que possamos ser cada vez mais aceitos na sociedade e construindo um estereótipo do praticante de parkour como alguém respeitoso, ético, controlado e amigável, favorecendo o desenvolvimento da atividade como algo positivo.
- Eu não tenho competência pra julgar a interpretação da prática de cada um, mas eu tenho plena certeza que esse oversharing de vídeos colocando o Parkour como algo “radical” e inconsequente não são benéficos para o desenvolvimento da prática como algo saudável.

Acho que era esse os 5 centavos sobre o assunto que eu tinha pra compartilhar.
Espero que tenha contribuido em algo para a discussão, que as pessoas tomem responsabilidade sobre suas ações e que daqui pra frente, encontram-se novas formas de divulgar o Parkour, sem precisar se utilizar de futilidades e guerrinhas de ego para tal.

Bons treinos, Abraço.

                                                                                                              Atenciosamente, Um Traceur.
















Referências (deste e do texto anterior #7)

https://www.academia.edu/9619214/Concepts_and_its_types












sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

#7 - Parkour, conceitos e a "falácia do escocês verdadeiro"

Faz algum tempo que não escrevo nada por aqui... o blog ficou parado tanto tempo que acho que mudarei o nome para “anuário de um traceur”.
A verdade é que este ano foi um ano bem conturbado pra mim, e apesar de não ter parado de estudar, refletir e treinar parkour, não consegui organizar minhas idéias para atualizar o blog com uma frequência bacana. E entre postar qualquer merda só pra dar volume nos posts e deixá-lo parado, eu prefiro dez vezes deixá-lo parado (não que normalmente o conteúdo fosse sensacional... mas vocês entenderam :P).

De qualquer forma estou tentando reviver este blog faz um tempo, e o momento atual do cenário parkouriano me motivou a escrever sobre uma discussão que tem acontecido bastante devido a acontecimentos recentes.

Porém, antes de tratar desta discussão em especial eu acredito que seja necessário abordar aqui um tema que eu já queria ter abordado a muito tempo e que será pertinente para diversas argumentações que eu usarei daqui pra frente (e talvez também seja útil para vocês refletirem e construirem um maior entendimento sobre o Parkour).

Eu honestamente sinto que em algum momento ele precisaria existir, pois ele baseia muitos pontos sobre os quais me apoio para interpretar a prática. Tentarei então, deixar as pontas bem amarradas para a compreensão do que eu estarei tentando mostrar.

Bom, vamos lá...

É usual as pessoas tentarem encaixar o Parkour em algum conceito pré estabelecido como ‘Esporte’, ’ginástica’, ‘Arte’, ‘método de treinamento’ e etc... Mas já a algum tempo, vendo as diferentes interpretações, a falta de uma definição única e a extrema dificuldade de emoldurá-lo, eu tenho cada vez mais refletido sobre o fato do parkour ser um conceito por si só.

Mas o que é um conceito?

Antes de mais nada, vou puxar um parênteses para dizer que é interessante pontuar que existe uma diferença entre “definição” e “conceito”. Esta é uma discussão EXTREMAMENTE COMPLEXA na filosofia, e eu NUNCA conseguiria elucidar completamente esta diferenciação neste texto, porém vou sintetizá-la de uma forma mais prática para que possa ser contextualizada no presente assunto (além de, é claro, deixar referências no final do texto para quem se interessar em se aprofundar).
Resumidamente, definição é uma forma de tentativa de caracterização do objeto através da sua essência, daquilo que o torna único, que o separa dos demais objetos. Enquanto isso o conceito, embora também seja uma tentativa de delimitação de sentido, aborda aquele objeto levando em consideração o ponto de vista e ideias mais aprofundadas sobre seu contexto. Por isso, ás vezes, apesar de ser possível delimitar-se uma definição sobre algo, é comum que haja conceitos alternativos para este mesmo (E as possibilidades de interações entre conceitos e definições são várias).

Um exemplo é a palavra “Democracia”. Existe uma definição, uma essência particular da palavra que é a idéia do governo que vem do povo. PORÉM, o conceito de democracia pode variar de autor para autor... pois a discussão aprofunda-se em diversas variáveis como pontos de vista e contextos variados.

Mas continuando... o que é mesmo um conceito?

Conceito pode ser definido de várias formas e é um assunto extremamente complexo no âmbito filosófico.
Geralmente é entendido como o conjunto de idéias que representam e significam algo.

“O conceito é aquilo que se concebe no pensamento sobre algo ou alguém.”[..]” Também pode ser interpretado como um símbolo mental, uma noção abstrata contida em cada palavra de uma língua que corresponde a um conjunto de características comuns a uma classe de seres, objetos ou entidades abstratas, determinando como as coisas são.
O conceito expressa as qualidades de uma coisa ou de um objeto, determinando o que este é e o seu significado.” (https://www.significados.com.br/conceito/)

“Do latim conceptus, o termo conceito refere-se à percepção, à ideia formada mentalmente, isto é, pelo entendimento.”  (http://conceito.de/conceito)  

Existem várias formas de se criar uma concepção sobre algo, eu vou me focar aqui em 2 aspectos, que para este texto serão os mais relevantes.

A primeira forma de se interpretar e reconhecer o ambiente é através do que é conhecido como Conceito Concreto. Este permite que o indivíduo registre informações a partir dos nossos sentidos (Vendo, ouvindo, cheirando, provando e tocando). Este conceito foca-se no “aqui e agora”, não se preocupa tanto em considerar “significados ocultos” naquela informação e não estabelece relações entre idéias e seus respectivos conceitos.

Como exemplo desse conceito podemos utilizar aspectos que podem ser caracterizados pelas suas particularidades detectáveis através dos 5 sentidos, como: Um Triângulo, uma pedra, uma casa, ou a cor verde. Você conseguiria sozinho estabelecer significados através da sua percepção de que cada coisa é uma coisa... encontraria padrões sem ninguém precisar te dar uma enciclopédia.

A segunda forma é o que chamamos de Conceito Abstrato. Consiste basicamente na formulação de idéias e significados que vão além dos 5 sentidos. Essa forma de reconhecimento é formulado através da concepção de idéias e de entender aquilo que não pode ser visto ou detectável através de seu tato, visão, audição, paladar e olfato. Parte da idéia de que ás vezes “nem tudo é o que parece”. Todo debate é construído através da ontologia, estabelecendo relações entre conceitos, ideias, linguagem e realidade. Alguns exemplos desse tipo de concepção da realidade são: Liberdade, Lucro, Ciência e etc. Coisas que não se significam de uma forma tão simples quanto a simples observação do “aqui e agora” e demandam certa abstração, introspecção e estudo.

Essa linha de pensamento conceitual (vinda principalmente dos pensadores antigos como Platão e Aristóteles) é área de estudo das disciplinas de Filosofia, Linguística, Psicologia e Ciência cognitiva. Em outras palavras é uma abstração e uma forma de se refletir para aquilo que é real.
Bom... para visualizar o que isso tem a ver com Parkour é necessário entender que a prática nasce de um conceito abstrato... algo que não necessariamente é tão simples de se conceber apenas através dos seus sentidos, pois parte de idéias como fotalecimento, criatividade, desafios, autonomia e desenvolvimento pessoal. Mas apesar de iniciar-se de uma mentalidade, ela se personifica e se torna real através de um conceito concreto... através de padrões de movimentação como correr, saltar, escalar, rolar e do uso desses padrões para superar obstáculos. Tudo muito facilmente observável e detectável através da visão e do tato. Tanto é que não é preciso que uma pessoa seja aprofundada na essência das ideias do parkour para conseguir olhar um praticante saltando e concluir “Olha, que legal, Parkour!” (e logo depois pedir “-faz um mortal pra eu ver?” ¬¬’).

Partindo dessa idéia, o parkour enquanto conceito constrói-se através de uma associação dos conceitos abstratos e concretos. Coisas que são observáveis, como os padrões e técnicas de movimentação (conceitos concretos, coisas que de fato nos permitam caracterizar e definir a prática) juntamente a idéias e ontologias que norteiam a ideologia de cada praticante (conceitos abstratos, os quais dificilmente podem ser limitados, dada a subjetividade na interpretação de cada um sobre aquilo que faz).

Como não existe um livro de regras, tampouco uma instituição que regulamente a prática e a defina como um formato “A”, “B” ou “C” pode-se assumir que essas construções e o próprio método de treino torna-se um conceito subjetivo, o qual será construído baseado nas referências que cada pessoa tem ao longo da sua vida enquanto traceur. Essa referência pode vir de vídeos na internet, pode vir de documentários, pode vir de praticantes que conheceu ou de estudos que a pessoa fez, e baseado nestas idéias, transforma em movimentos aquilo que ela entendeu e o que ela acredita.

Parkour nunca foi divulgado ou abordado como uma disciplina emoldurada, finalizada e pronta para consumo. Nunca existiu um livro do tipo “Guia básico para o Parkour: Regras e limitações da prática” ou “O Parkour verdadeiro”, simplesmente porque, na visão original, era pra ser algo voltado pra construção da própria autonomia e liberdade. Essa idéia é claramente passada através da análise da última entrevista que David Belle concedeu a Tim Shieff, onde afirma coisas como:

- “Parkour não é uma possessão minha, Parkour é uma coisa que eu vivi e que eu doei. E Parkour será o que você fará dele.”
- “Todos são livres para fazer do Parkour o que quiserem”
- “você achará seu próprio caminho”.

Também é observada no livro “Find your Way” do Foucan.

“[...] trata de viver a vida em toda sua plenitude, mentalmente, fisicamente e espiritualmente – e esta é a razão porque o seu caminho não tem nome, nenhuma palavra pode encapsular a sua jornada.” (Find Your Way – pág 17)

Esse relativismo de conceitos também pode ser observada no Ciné Parkour:

“O Parkour é um fenômeno multidimensional que pode ser experimentado como arte, disciplina de treinamento, esporte, conjunto de valores e prática da liberdade, dependendo das motivações de um indivíduo, seu entendimento cultural e da exposição à história da prática. A pesquisa estabelece que o parkour é uma maneira imaginativa e particular de pensar;” (Angel. Julie, Ciné Parkour - a cinematic and theoretical contribution to the understanding of the practice of parkour, 2011)

E também durante o documentário “Geração Yamakasi”:

“[...]É uma forma de liberdade, um meio de expressão, uma maneira de se ganhar auto-confiança. Seu conceito nunca é claramente definido.” (Chau Belle – Geração Yamakasi, parte 1)

Independente da fonte que se utilize o Parkour nunca é tratado como algo imóvel e imutável. Os criadores deixaram a idéia da prática enquanto ferramenta para se conhecer, e que poderia ser utilizado como o praticante escolher. (Ps: todos os links para as referências estarão no final do texto)
Além disso, se o encararmos como um conceito abstrato pode-se concluir que sua significação ideológica fica á cargo do observador (no caso, os próprios praticantes) que acrescentam seus pontos de vista e formas de se conceber aquilo.

 Idéias são abstratas, subjetivas, algo que não pode ser visto, tocado ou provado como absoluto. E o fato de não existir uma única definição conceitual que crie um muro imaginário separando as visões, ainda que discordantes, torna uma diversidade enorme de manifestações ideológicas no Parkour válidas. E isso é tão facilmente comprovável que mesmo entre os próprios criadores haviam discordâncias. A prova disso é a própria confusão feita ao longo do tempo com relação as nomenclaturas utilizadas (Tema que eu já abordei neste post e que é muito bem explicado pelo Bruno Peixoto neste vídeo).

O fato é que não existe uma bíblia do parkour, que diga o que faz e o que não faz parte da prática (E mesmo se existisse, não faria a menor diferença pois como David Belle diz muito bem “não é possível impedir as pessoas de criarem suas próprias interpretações”. Prova disso é a quantidade de religiões cristãs com suas respectivas bíblias... se a idéia fosse algo imutável o cristianismo nunca teria tantas vertentes).

Como não temos um guia escrito, o Parkour é passado adiante através do famoso boca-a-boca. Esse processo é bem estudado e conhecido como “Tradição Oral”, e é utilizado à milênios como forma de se passar informações, memórias e conhecimento de um determinado grupo através da fala. (Referências no final do texto). Isso torna-se um grante telefone-sem-fio onde o que aprendeu com outras pessoas é perpetuado e passado adiante, num processo contínuo.

Como existem diferentes interpretações da mesma prática, alguns valores são acrescentados, alguns tirados e no final das contas não é de se surpreender que os conceitos da atividade sejam tão diferentes se você migrar de grupo pra grupo ao redor do mundo. As ideologias e formas de se aplicar a parte prática mudam muito, e isso é natural, visto que a concepção de todo o movimento parte de um ponto de vista subjetivo... baseado em motivações e interpretações individuais, o que faz cada forma de se praticar algo extremamente pessoal.

Visto a atual velocidade com que as informações são divulgadas e acessadas hoje em dia, essa avalanche de interpretações tomam as redes sociais, fazendo com que as concepções mais antigas fiquem cada vez mais “apagadas” no “passado da internet”. Quanto mais novo você for dentro do Parkour, mais difícil fica de você conhecer os conceitos e idéias aplicados pelos fundadores da prática, e quanto mais longe da fonte primária, mais diluídos ficam seus conceitos originais.

Tá, mas quem está certo então? Os fundadores?

Sinceramente.... se você leu tudo isso até aqui e ainda tá achando que tem ‘certo’ e ‘errado’ nessa história... você leu tudo errado, lê de novo.

Resumidamente, só para esse texto não ficar ainda mais gigantesco:

O Parkour é uma prática em comum, que pode ser definida como um método de treinamento que permite ao individuo utilizar seu corpo para se locomover no ambiente (ou seja, tem uma definição específica mais superficial), mas é passível de interpretações e conceituações pessoais (discussões, reflexões e interpretações que o tornam um conceito abstrato). Logo, o que cada um faz da sua prática é um particular que diz respeito unicamente á consciência daquele determinado indivíduo.

“Mas eu não concordo com a forma que ele pratica... as idéias dele não são iguais as minhas.”

O Parkour enquanto conceito, como mostrado, não é uma apropriação sua pra você dizer como tem ou não que ser a prática de outra pessoa. Não é como se você tivesse os “direitos autorais” sobre toda a idéia envolvendo os conceitos, o que o tornaria o que você quisesse que fosse. Se nem os próprios criadores instituiram limites, então talvez você deva parar de tentar restringir as concepções alheias. No máximo você pode impor limites para a sua própria prática, a sua própria interpretação do Parkour, mas nunca a dos outros.

“Então você está dizendo que se alguém saltar um muro pra roubar uma casa, aquilo é parkour?”
É claro que tem muito praticante cabeça-de-vento por aí... que não se dá ao trabalho de pesquisar, de buscar referências e construir suas idéias com coerência e coesão. Mas isso não descaracteriza o parkour dele, só o torna extremamente superficial, raso e fraco. Como diz o ditado “A opinião mais burra do mundo continua sendo uma opinião.”.

Obviamente o parkour não se resume a “pular muro”. Não é porque alguém está pulando de um telhado pro outro, ou escalando uma árvore, ou mesmo fazendo um vault... que necessariamente ele está fazendo parkour. Como eu disse antes, Parkour, além de sua definição física, é um conceito, uma mentalidade. Se a pessoa se identifica como um praticante de parkour e dentro do entendimento dela, aquilo se encaixa na sua interpretação,então amigo, ele está fazendo parkour sim. E, PASMEM, um praticante de parkour pode sim utilizar da sua prática pra roubar uma casa.

O Parkour é apenas uma ferramenta, um instrumento que pode ser utilizado de diversas formas diferentes, tanto pra bem, quanto pra mal.

Mas é claro que existem alguns parâmetros que são consensuais entre os praticantes e que norteiam o entendimento do conceito inteiro. São bem conhecidos os lemas “ser forte para ser útil” e “ser e durar” importados do Método Natural de George Hebert. Também todos identificam-se com determinadas técnicas de movimentação que são bem características do Parkour. Além disso a ideia da prática consistir em métodos de treino que permitam ao individuo ultrapassar obstáculos de forma eficiente, explorar o ambiente, ressignificar o espaço, superar os próprios medos e limitações, se fortalecer e se desafiar utilizando apenas o próprio corpo também é algo bastante fixo na comunidade em geral e bem citado em artigos científicos publicados. Apesar de não podermos cercear os conceitos, podemos partir de uma definição bastante clara, que foi construída através da própria forma de se movimentar dentro da atividade.

No geral as pessoas tem mais contato com o conceito concreto (definição) do Parkour, aquilo que é observável em vídeos, porém a parte ontológica e seus conceitos abstratos, tanto básicos, quanto os profundos, só são possíveis de se entender com algum estudo e vivência dentro da prática, e a partir daí as possibilidades de concepções e interpretações acerca da prática são inúmeras (Aristóteles fala bastante da concepção de um objeto através da experiência).

O que se conclui então?

Seguindo este raciocínio, pode se concluir que existe um “ponto A” no Parkour, uma definição ‘essencial’ sobre o qual os praticantes apoiam-se para começar a entender o que é a prática, e a partir de um certo ponto a pessoa passa a interpretá-lo dependendo de suas próprias compreensões.
Por essa razão não há como excluir interpretações diferentes... não há como afirmar que “Parkour não é isso” ou “Parkour é aquilo”. Parkour tem giro? Parkour tem competições? Parkour é arte? É esporte? É filosofia de vida? Tudo depende de como você vai interpretar os seus próprios conceitos e como vai construir seu entendimento do todo (Mas se quer a minha opinião sobre parkour ser um esporte eu apresento alguns argumentos neste texto). O máximo que você pode dizer com relação ao que é ou não Parkour é baseado em princípios básicos. Mas se a pessoa está se desafiando, está ultrapassando obstáculos, está explorando o ambiente, está utilizando o próprio corpo para superar seus medos, e o mais importante, aquela pessoa entende aquilo que ela está fazendo como Parkour, Então porque não seria?

Claro que é necessário o mínimo de bom-senso para não viajar demais em suas interpretações. Como dizer que tomar café ao som de aerosmith enquanto acaricia seu gato Dejair é Parkour, porque sim.... é necessário o mínimo de coerência com as bases conceituais consideradas concretas na prática. Mas ao mesmo tempo nada impede que você utilize a mentalidade construída no Parkour para outras coisas na sua vida, como superar um problema no seu trabalho ou ser útil para sua família... porém é necessário entender quando se está utilizando a “mentalidade do Parkour” e quando se está, de fato, o praticando.

Então se alguém daqui pra frente vier te falar que “Tal coisa não é ‘Parkour de verdade’” ou que “Parkour puro não tem isso”, saiba que muito provavelmente ele está utilizando uma falácia clássica conhecida como “Falácia do Escocês de verdade”, que consiste em tentar defender uma ideologia como ‘perfeita’ desconsiderando as provas evidentes de que nem todo mundo se comporta daquele determinado modo naquele respectivo grupo. Quando apresentadas as evidências a saída é apelar desonestamente para “Ah, essa prova não vale porque ele não é um praticante de verdade”. Eu sei que a essa altura vocês já imaginaram o exemplo mais clássico das polêmicas no Parkour, os giros. Sim amigos, este é um excelente exemplo de uma falácia argumentativa:

“Pessoa A: - Parkour não tem giros.
Pessoa B: - Mas existem diversas pessoas que fazem parkour e que giram.
Pessoa A: - Eles não fazem Parkour de verdade, fazem outra coisa.”

Claro que não existe forma nenhuma de excluir uma pessoa de um grupo só porque ela pratica algo que você não concorda. O que deve ser observado é todo o contexto que já foi citado acima. Você pode sim discordar de determinadas atitudes dentro do grupo, mas não se utilizando de uma forma falaciosa de argumento, que busca fugir dos fatos e fechar os olhos para as evidências. Normalmente isso é utilizado para tentar “defender um grupo” de uma pessoa que tenha feito algo desonroso, ou considerado errado de alguma forma. Porém existem formas honestas e verdadeiras de se argumentar sem precisar excluir do grupo o coleguinha que fez algo lamentável. Afinal, isso além de desonesto é uma covardia absurda, afinal, você claramente quer fugir do fato de ter que aceitar que o seu grupo não é perfeito.

 Deixarei nas referências uma explicação mais aprofundada sobre essa falácia, que é bem típica.
Por fim, para fechar o texto eu gostaria de deixar claro que não é porque a prática do Parkour pode ser interpretada de diversas formas diferentes, que isso necessariamente é bom. Há sempre a necessidade de se discutir se determinadas atitudes, codutas e pensamentos devem ser socialmente aceitos na prática e, juntos, construirmos uma mentalidade ética e moral que seja honesta partilhada por todos nós, praticantes. E para elucidar um pouco tudo isso que eu quis dizer até agora, vou utilizar uma citação do avô do David Belle que está em seu livro.

“Com uma faca você pode escolher se tornar um serial killer ou um escultor” (David Belle’s Parkour – Interview with the founder of the discipline by Sabine Gros La Faige. Página 16)

A responsabilidade é sua!

Espero ter contribuido em algo com você que leu até aqui, obrigado pela paciência.

Fiquem a vontade para criticar, debater, compartilhar e construir conhecimento.

Em breve (mesmo) postarei a "continuação" deste texto, que ficará linkado AQUI, assim que sair.



                                                                                                              Atenciosamente, Um Traceur.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

#6 - O Erro


Querido diário há algum tempo uma pequenina grande amiga pediu para que eu escrevesse algo sobre erros. Eu sinceramente não fazia ideia do que escrever ou de como abordar esse tema, levei um bom tempo pensando em como conseguiria tratar deste tema com a real relevância que ele merece. Hoje ainda tenho um grande receio de escrever sobre isso, mas acredito estar um pouco mais maduro e, talvez, mais preparado pra encarar esta pauta.


Bom, o que será que a palavra “erro” significa? (Preciso muito comprar um dicionário)
Erro - Ato ou efeito de errar. Juízo ou julgamento em desacordo com a realidade observada; engano. Qualidade daquilo que é inexato, incorreto. Desvio do caminho considerado correto, bom, apropriado; desregramento. (Google)
s.m. Opinião, julgamento contrário à verdade: cometer erro.
Falsa doutrina; opinião falsa. Engano, equívoco: erro de cálculo.
Errar é uma possibilidade presente em nossas vidas desde a primeira vez que tentamos algo até o momento em que morremos. É uma característica presente nas nossas vidas e extremamente necessária para o processo de aprendizado.
Normalmente pode acontecer por diversas razões, e são inúmeras as variáveis que interferem no acerto ou desacerto de um trabalho, seja ele qual for. Dentre as diversas formas e manifestações do erro podemos assumir que, no geral, a forma como lidamos com ele, independente de onde aconteça, pode ser a mesma. Então não importa onde você tenha errado, seja em uma conta de matemática, na tentativa de uma nova técnica de movimentação, seja na sua vida profissional ou no convívio com outra pessoa, os pensamentos a seguir poderão (ou não) ser aplicadas em ambos os casos.
É usual encarar a situação do erro como algo passível de punição. Somos acostumados a apontar o dedo para os erros dos outros e tratá-los como motivo de chacota, piada ou demérito. A grande prova disso é o quanto as pessoas acham engraçado quando alguém cai, escorrega ou é desastrado de alguma forma. Se isto fosse mentira, programas como “vídeo-cassetadas do Faustão”, “Partoba” e “fail army” nunca fariam o sucesso que fazem.
Por muito tempo, esta atitude era vista no próprio ambiente escolar. Parafraseando Cortella: “Quantas vezes na escola, quando se acertava, colocava-se um "C" pequenininho no trabalho, e quando errava, um ‘E’ em vermelho grandão, valorizando algo que tem que ser corrigido e não punido.”.
Rir dos erros das pessoas é muito mais conveniente do que ajudá-las a acertar não é mesmo? E apenas quando falamos dessa forma, enxergamos o quão lamentável pode ser a nossa conduta sem ao menos perceber.
Novamente citando Mario Sergio Cortella “O erro não deve ser punido e sim corrigido.”. O erro é parte fundamental no processo de exploração, tentativa e claro, no aprendizado. Não houvesse erros, equívocos e resultados falhos nas tentativas de se descobrir algo, nós NUNCA evoluiríamos nossa percepção e conhecimento científico, tampouco nossa sociedade tão dependente dos avanços tecnológicos. Lembre-se que para cada acerto, centenas, senão milhares de pessoas erraram das mais diversas formas e cada erro foi fundamental para que seus sucessores pudessem fazer diferente, e através das correções desses erros prévios, acertar.
É aqui que chamo a atenção para algo que considero essencial entendermos. O erro em si não significa nada se não soubermos identificá-lo, humildemente entendê-lo e corrigi-lo. Ou seja, nós não aprendemos com ele, e sim com a sua correção. Por isso a frase “O erro é humano, mas persistir em cometê-lo é burrice” apesar de ser extremista, é bem coerente. Digo que é extremista, pois ás vezes persistir em um erro não constitui necessariamente burrice, pode significar simplesmente que você ainda não aprendeu o que deveria com aquilo.

Engana-se aquele que pensa que os mais experientes não erram. Não importa se você é um mestre, você será sempre aprendiz dos erros que ainda não cometeu. E acredite, por melhor que você seja, sempre haverá essa possibilidade.
Obviamente não devemos premiar o erro e enaltecê-lo como a única forma ou mesmo a mais eficiente de aprendizado, pois isso seria uma grande mentira, o que proponho aqui é apenas admiti-lo e entendê-lo como uma parte importante para o seu próprio crescimento pessoal em qualquer área.
O que realmente deve ser punido, principalmente no parkour, é a negligência, imprudência e a falta de bom senso.
Através do parkour você tem uma grande possibilidade de aprender coisas incrivelmente úteis para a sua vida e uma delas, sem dúvidas, é a capacidade de identificar seus próprios erros e trabalhar para corrigi-los.
Claro, previna-se para não cair, mas caso caia NUNCA pense que isso significa que você é menos capaz. Aceite que isso é uma parte do seu aprendizado, desenvolva sua humildade e assuma-o com honra. Não há demérito em erros, afinal vivemos para aprender e aprendemos muito dessa forma, mas busque sempre melhorar nas próximas vezes. Como disse Einstein “Tolice é fazer as coisas sempre da mesma forma e esperar resultados diferentes.”.
Além disso, sejamos úteis para as pessoas que também erram. Nós, enquanto traceurs, praticantes de uma disciplina que tem na sua essência o altruísmo, deveríamos praticá-lo, afinal o “ser forte para ser útil” não deveria desaparecer quando alguém ao seu lado erra, então se você é do tipo de pessoa que apenas aponta dedos e se diverte com o erro dos outros, saiba que você está sendo uma pessoa extremamente desagradável, não só para o parkour, mas para o mundo, afinal você também erra.
Lembrem-se, não existe fracasso no erro, o fracasso está na arrogância e na resistência em admitir que não sabemos de tudo.
Espero que daqui pra frente você que leu este texto até o final possa talvez enxergar seus erros de outra forma, deixar de se punir e manter-se trabalhando para corrigi-los, tendo coragem e humildade o suficiente para assumi-los e compreender que isso é parte natural da vida de alguém que busca fazer algo bem feito.

Texto dedicado à pequena grande traceuse, Camila Stefaniu Ribeiro s2

Bons treinos.
Atenciosamente, um Traceur.

sábado, 3 de outubro de 2015

#5 - A casca do Parkour

Querido diário, hoje o conteúdo do post será voltado para uma reflexão que tem tomado minha atenção nas últimas semanas. Questionamentos que me fizeram buscar nas minhas origens as razões de fazer o que eu faço. Provavelmente as ideias a seguir cairão num clichê, num modo apaixonado de se enxergar o Parkour. Todavia, achei interessante deixar registrados esses pensamentos particulares para basear e facilitar futuros diálogos.

 É muito difícil escrever sobre a maneira que interpreto a disciplina, pois de alguma forma sinto que ao exteriorizar minha forma de ler as entrelinhas dos percursos acabo deixando de lado o modo como outros praticantes fazem isso. Por essa razão na maior parte dos meus textos busco trazer argumentos fundamentados por outras pessoas, de forma a respeitar o que já está documentado em fontes consideradas “confiáveis”. Isso é basicamente seguir uma premissa científica de revisão bibliográfica. Mas apesar de ser um método universalmente aceito de se fazer pesquisas, tenho sentido que eu me abstive de sentir efetivamente o que o parkour sempre me proporcionou pra me pautar exclusivamente no que outros tinham a dizer.

Deixar de me ouvir fez com que grande parte da minha motivação se esvaísse pelas brechas deixadas na falta de argumentos científicos. Por isso resolvi meditar um pouco para resgatar o sentimento que me manteve de pé, mesmo quando via todos ao meu redor caindo. Não que o conhecimento científico tenha me atrasado, mas em algum ponto eu me desequilibrei. Deixei de sentir apenas para pensar. Estou recobrando o equilíbrio entre essas duas coisas. Por essa razão, esse texto não tem a menor pretensão de atingir grandes públicos nem mesmo de confrontar nenhum ponto de vista que seja diferente ou até antagônico ao meu. Simplesmente quero expressar um pouco do que meu coração tem pra dizer.

Já escrevi sobre o que é parkour em outro post, e existem muitos outros textos e vídeos pela internet que explicam de forma bem didática do que se trata a atividade, então não vou me aprofundar nesses mesmos pontos, a proposta aqui é outra. Como disse, essa é a minha forma de enxergar a prática.

Enfim... Deixa eu parar de enrolação.


“Parkour está em tudo o que faço, na forma como eu vivo e vejo o mundo ao meu redor.”

Esta frase contém um componente muito particular. Uma forma individual de ler e sentir a prática. Algo que nasce dentro de um método de movimentação e se expande para uma mentalidade que cerca e norteia praticamente todo meu caminho.

Vejo parkour como uma forma de construção de autoconhecimento e movimentação útil. Entendo “movimentação útil” como o domínio corporal da forma mais completa possível, compreendendo as ações e razões que te levam a isso. Aprendemos a utilizar nosso corpo em totalidade para desenhar no ambiente infinitas formas de desafiar a si mesmo e dessa forma ampliar cada dia mais a funcionalidade e percepção do nosso corpo.

Temos em nosso corpo centenas de ossos e músculos conectados de diversas formas, formando alavancas que nos dão possibilidades incríveis de movimentação. O parkour é usado pra dar sentido a todas essas alavancas e torná-las funcionais, a fim de sermos capazes de explorar o ambiente que nos cerca. Tornar obstáculos em possibilidades e fazer d’uma ferramenta de liberdade aquilo que antes nos cercava, prendia e impedia.

Acredito que todas as pessoas ao nascerem iniciam esse processo de exploração do mundo com o próprio corpo. Vejo como as crianças aprendem e interpretam o mundo com brincadeiras e experiências de exploração. Ainda que não saibam, estão se desenvolvendo enquanto buscam o seio materno com a boca, engatinham, sobem em árvores, pulam nas pedras de seu quintal, correm livremente pelo pátio durante o recreio e andam pelas guias da calçada como se fossem cordas bambas. Mas infelizmente grande parte é desencorajada a explorar o mundo pelos adultos, e até repreendidos por isso. Dessa forma somos ‘educados’ a não experimentar todas as dimensões do que poderíamos alcançar, utilizando amplamente nosso sistema motor.

É como se o controle sobre nosso corpo tivesse, em algum ponto do nosso crescimento, entrado no piloto automático, e com o parkour voltássemos a controlar nossos movimentos manualmente. Desta maneira fortalecemos nosso corpo e a percepção de diversas formas. Em outras palavras, voltamos a aprender através dos desafios provindos da exploração do mundo a nossa volta. Esse confronto com os obstáculos encontrados durante a exploração de percursos no ambiente nos força a sair da zona de conforto e atingirmos níveis de compreensão sobre nós mesmos que não imaginaríamos que seria possível.

 É através dessa mesma compreensão que é formada, a meu ver, a essência do parkour.
 É quando estou a fluir por entre a paisagem, passando por blocos de concreto, escalando árvores cascudas e espinhentas, aterrissando em pedras escorregadias, equilibrando-me em corrimãos e saltando por fendas profundas que é desperto em minha mente o ponto mais crucial da prática.

 “Por que me tornar forte? Por que me tornar hábil? Por que tantas repetições só pra subir uma parede de uma forma fluída, leve, rápida e eficiente? Ninguém me dará uma medalha por isso, então por que continuar?”

Essas perguntas não se respondem apenas na movimentação em si. Saltar mais alto, mais longe, ficar mais forte, mais rápido, mais resistente, ser capaz de realizar proezas extraordinárias e acrobacias que impressionam até mesmo dublês experientes... Tudo isso são consequências reais e até bem tangíveis dentro da prática, mas ainda assim não representam o propósito real daquelas perguntas. Isso porque elas remetem a introspecções muito mais profundas, que vão além da dimensão meramente física ou ‘tecnicista’ dos movimentos.

Quando chego ao fundo da reflexão, enxergo que não estou mais fazendo aquilo simplesmente pelos ganhos físicos. O parkour ganhou um sentido, um significado enraizado na maior parte das minhas concepções. Eu me movo pelo aprendizado carregado em cada situação de adversidade pela qual passei. Por cada erro cometido, cada medo vencido, por cada obstáculo deixado pra trás, pela pessoa que me tornei e o mais importante, pela pessoa que quero me tornar.

Everything is kung fu - karate kid

Como eu já disse, passei a enxergar o parkour em tudo. Na arquitetura ao meu redor, nas possibilidades de caminhos escondidos na cidade, na forma como caminho, na forma como me comporto perante a sociedade, na forma como interajo com outras pessoas e até na forma como encaro problemas.

O parkour me ensinou que não basta ser forte, se esta força não for direcionada para algo útil, algo produtivo, algo que efetivamente ajude a mim ou a alguém no decorrer da minha vida. Ainda que eu nunca precise sair de um prédio em chamas. Ainda que eu nunca precise salvar alguém em uma situação de perigo. Ainda que essa força me sirva como uma simples forma de expressão corporal. Se eu conseguir utilizar a sabedoria desenvolvida nos meus momentos de treino para persistir em um momento difícil da minha vida, usar minha experiência com o medo para aconselhar e guiar uma única pessoa para um caminho positivo, se me serviu apenas para aprender a apreciar e respeitar coisas pequeninas da vida e da natureza, se o parkour serviu unicamente para conhecer as pessoas incríveis que conheci e estabelecer vínculos tão preciosos pra mim, então vou poder olhar com orgulho para cada calo aberto, cada gota de suor, sangue e cada lágrima derrubada, cada bolha de sangue no pé, cada queda, cada vez que me achei fraco e incapaz e dizer com o peito cheio de alegria que valeu cada segundo investido, que o parkour realmente foi útil na minha história.

Através de todo esse aprendizado que tive durante meu percurso, percebi que meu comportamento reflete diretamente na imagem que eu tenho de mim mesmo, e que se eu não puder ser humilde e aceitar meus erros eu nunca poderei melhorá-los. Mostrou que existem obstáculos em meu caminho que não vão medir esforços em me mostrar o quanto sou fraco, mas que esses obstáculos podem ser utilizados como treinamento para fortalecer o meu corpo, a minha mente e o meu caráter. E entre tantos outros ensinamentos, me ensinou como ser uma pessoa melhor, mais digna, e mais útil para o ambiente em que eu vivo. Afinal, movimentar-se de uma maneira mais funcional, dominar o meu corpo e explorar o ambiente é apenas a “casca” do parkour, porém, o conteúdo trazido de toda essa experiência é o que realmente conta na flow, que eu chamo de vida.

Por isso, o parkour está presente em todos os aspectos da minha vida. Extrapola o momento em que eu me movimento, e envolve toda energia que eu tenho pra viver e pra dedicar às coisas do meu dia-a-dia. Pois se eu sou capaz de vencer desafios ininterruptos enquanto eu treino, por que não seria capaz de vencer desafios na minha vida cotidiana? Se sou capaz de chegar até lugares onde muitos julgariam impossível, por que não fazer isso na minha vida profissional? Se sou capaz de tratar com respeito meus colegas de treino e o lugar onde treino, por que não fazer isso com o ambiente em que vivo e com as pessoas ao meu redor?

É através desse constante exercício de maiêutica que me torno apto a mudar para alguém mais consciente e sábio, para mim e para a sociedade. Afinal como já disse Sócrates, “Conhece-te a ti mesmo e conhecerá todo o universo”.

Portanto, parkour está presente em todos os detalhes particulares da minha vida, pois vem da mentalidade construída através de todos os meus anos de experiências e treinos. Fatores que moldaram não apenas a forma como eu me movimento, mas também, a forma como eu vivo. E pra mim, parkour é mais do que a 'casca'.

Um agradecimento mais do que especial a minha companheira Marina Neves e ao Gustavo Ivo do Parkour Salvador pela ajuda com o texto e por me instigar a sentir e me expressar.

Bons treinos!

Atenciosamente, um traceur.