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sábado, 3 de outubro de 2015

#5 - A casca do Parkour

Querido diário, hoje o conteúdo do post será voltado para uma reflexão que tem tomado minha atenção nas últimas semanas. Questionamentos que me fizeram buscar nas minhas origens as razões de fazer o que eu faço. Provavelmente as ideias a seguir cairão num clichê, num modo apaixonado de se enxergar o Parkour. Todavia, achei interessante deixar registrados esses pensamentos particulares para basear e facilitar futuros diálogos.

 É muito difícil escrever sobre a maneira que interpreto a disciplina, pois de alguma forma sinto que ao exteriorizar minha forma de ler as entrelinhas dos percursos acabo deixando de lado o modo como outros praticantes fazem isso. Por essa razão na maior parte dos meus textos busco trazer argumentos fundamentados por outras pessoas, de forma a respeitar o que já está documentado em fontes consideradas “confiáveis”. Isso é basicamente seguir uma premissa científica de revisão bibliográfica. Mas apesar de ser um método universalmente aceito de se fazer pesquisas, tenho sentido que eu me abstive de sentir efetivamente o que o parkour sempre me proporcionou pra me pautar exclusivamente no que outros tinham a dizer.

Deixar de me ouvir fez com que grande parte da minha motivação se esvaísse pelas brechas deixadas na falta de argumentos científicos. Por isso resolvi meditar um pouco para resgatar o sentimento que me manteve de pé, mesmo quando via todos ao meu redor caindo. Não que o conhecimento científico tenha me atrasado, mas em algum ponto eu me desequilibrei. Deixei de sentir apenas para pensar. Estou recobrando o equilíbrio entre essas duas coisas. Por essa razão, esse texto não tem a menor pretensão de atingir grandes públicos nem mesmo de confrontar nenhum ponto de vista que seja diferente ou até antagônico ao meu. Simplesmente quero expressar um pouco do que meu coração tem pra dizer.

Já escrevi sobre o que é parkour em outro post, e existem muitos outros textos e vídeos pela internet que explicam de forma bem didática do que se trata a atividade, então não vou me aprofundar nesses mesmos pontos, a proposta aqui é outra. Como disse, essa é a minha forma de enxergar a prática.

Enfim... Deixa eu parar de enrolação.


“Parkour está em tudo o que faço, na forma como eu vivo e vejo o mundo ao meu redor.”

Esta frase contém um componente muito particular. Uma forma individual de ler e sentir a prática. Algo que nasce dentro de um método de movimentação e se expande para uma mentalidade que cerca e norteia praticamente todo meu caminho.

Vejo parkour como uma forma de construção de autoconhecimento e movimentação útil. Entendo “movimentação útil” como o domínio corporal da forma mais completa possível, compreendendo as ações e razões que te levam a isso. Aprendemos a utilizar nosso corpo em totalidade para desenhar no ambiente infinitas formas de desafiar a si mesmo e dessa forma ampliar cada dia mais a funcionalidade e percepção do nosso corpo.

Temos em nosso corpo centenas de ossos e músculos conectados de diversas formas, formando alavancas que nos dão possibilidades incríveis de movimentação. O parkour é usado pra dar sentido a todas essas alavancas e torná-las funcionais, a fim de sermos capazes de explorar o ambiente que nos cerca. Tornar obstáculos em possibilidades e fazer d’uma ferramenta de liberdade aquilo que antes nos cercava, prendia e impedia.

Acredito que todas as pessoas ao nascerem iniciam esse processo de exploração do mundo com o próprio corpo. Vejo como as crianças aprendem e interpretam o mundo com brincadeiras e experiências de exploração. Ainda que não saibam, estão se desenvolvendo enquanto buscam o seio materno com a boca, engatinham, sobem em árvores, pulam nas pedras de seu quintal, correm livremente pelo pátio durante o recreio e andam pelas guias da calçada como se fossem cordas bambas. Mas infelizmente grande parte é desencorajada a explorar o mundo pelos adultos, e até repreendidos por isso. Dessa forma somos ‘educados’ a não experimentar todas as dimensões do que poderíamos alcançar, utilizando amplamente nosso sistema motor.

É como se o controle sobre nosso corpo tivesse, em algum ponto do nosso crescimento, entrado no piloto automático, e com o parkour voltássemos a controlar nossos movimentos manualmente. Desta maneira fortalecemos nosso corpo e a percepção de diversas formas. Em outras palavras, voltamos a aprender através dos desafios provindos da exploração do mundo a nossa volta. Esse confronto com os obstáculos encontrados durante a exploração de percursos no ambiente nos força a sair da zona de conforto e atingirmos níveis de compreensão sobre nós mesmos que não imaginaríamos que seria possível.

 É através dessa mesma compreensão que é formada, a meu ver, a essência do parkour.
 É quando estou a fluir por entre a paisagem, passando por blocos de concreto, escalando árvores cascudas e espinhentas, aterrissando em pedras escorregadias, equilibrando-me em corrimãos e saltando por fendas profundas que é desperto em minha mente o ponto mais crucial da prática.

 “Por que me tornar forte? Por que me tornar hábil? Por que tantas repetições só pra subir uma parede de uma forma fluída, leve, rápida e eficiente? Ninguém me dará uma medalha por isso, então por que continuar?”

Essas perguntas não se respondem apenas na movimentação em si. Saltar mais alto, mais longe, ficar mais forte, mais rápido, mais resistente, ser capaz de realizar proezas extraordinárias e acrobacias que impressionam até mesmo dublês experientes... Tudo isso são consequências reais e até bem tangíveis dentro da prática, mas ainda assim não representam o propósito real daquelas perguntas. Isso porque elas remetem a introspecções muito mais profundas, que vão além da dimensão meramente física ou ‘tecnicista’ dos movimentos.

Quando chego ao fundo da reflexão, enxergo que não estou mais fazendo aquilo simplesmente pelos ganhos físicos. O parkour ganhou um sentido, um significado enraizado na maior parte das minhas concepções. Eu me movo pelo aprendizado carregado em cada situação de adversidade pela qual passei. Por cada erro cometido, cada medo vencido, por cada obstáculo deixado pra trás, pela pessoa que me tornei e o mais importante, pela pessoa que quero me tornar.

Everything is kung fu - karate kid

Como eu já disse, passei a enxergar o parkour em tudo. Na arquitetura ao meu redor, nas possibilidades de caminhos escondidos na cidade, na forma como caminho, na forma como me comporto perante a sociedade, na forma como interajo com outras pessoas e até na forma como encaro problemas.

O parkour me ensinou que não basta ser forte, se esta força não for direcionada para algo útil, algo produtivo, algo que efetivamente ajude a mim ou a alguém no decorrer da minha vida. Ainda que eu nunca precise sair de um prédio em chamas. Ainda que eu nunca precise salvar alguém em uma situação de perigo. Ainda que essa força me sirva como uma simples forma de expressão corporal. Se eu conseguir utilizar a sabedoria desenvolvida nos meus momentos de treino para persistir em um momento difícil da minha vida, usar minha experiência com o medo para aconselhar e guiar uma única pessoa para um caminho positivo, se me serviu apenas para aprender a apreciar e respeitar coisas pequeninas da vida e da natureza, se o parkour serviu unicamente para conhecer as pessoas incríveis que conheci e estabelecer vínculos tão preciosos pra mim, então vou poder olhar com orgulho para cada calo aberto, cada gota de suor, sangue e cada lágrima derrubada, cada bolha de sangue no pé, cada queda, cada vez que me achei fraco e incapaz e dizer com o peito cheio de alegria que valeu cada segundo investido, que o parkour realmente foi útil na minha história.

Através de todo esse aprendizado que tive durante meu percurso, percebi que meu comportamento reflete diretamente na imagem que eu tenho de mim mesmo, e que se eu não puder ser humilde e aceitar meus erros eu nunca poderei melhorá-los. Mostrou que existem obstáculos em meu caminho que não vão medir esforços em me mostrar o quanto sou fraco, mas que esses obstáculos podem ser utilizados como treinamento para fortalecer o meu corpo, a minha mente e o meu caráter. E entre tantos outros ensinamentos, me ensinou como ser uma pessoa melhor, mais digna, e mais útil para o ambiente em que eu vivo. Afinal, movimentar-se de uma maneira mais funcional, dominar o meu corpo e explorar o ambiente é apenas a “casca” do parkour, porém, o conteúdo trazido de toda essa experiência é o que realmente conta na flow, que eu chamo de vida.

Por isso, o parkour está presente em todos os aspectos da minha vida. Extrapola o momento em que eu me movimento, e envolve toda energia que eu tenho pra viver e pra dedicar às coisas do meu dia-a-dia. Pois se eu sou capaz de vencer desafios ininterruptos enquanto eu treino, por que não seria capaz de vencer desafios na minha vida cotidiana? Se sou capaz de chegar até lugares onde muitos julgariam impossível, por que não fazer isso na minha vida profissional? Se sou capaz de tratar com respeito meus colegas de treino e o lugar onde treino, por que não fazer isso com o ambiente em que vivo e com as pessoas ao meu redor?

É através desse constante exercício de maiêutica que me torno apto a mudar para alguém mais consciente e sábio, para mim e para a sociedade. Afinal como já disse Sócrates, “Conhece-te a ti mesmo e conhecerá todo o universo”.

Portanto, parkour está presente em todos os detalhes particulares da minha vida, pois vem da mentalidade construída através de todos os meus anos de experiências e treinos. Fatores que moldaram não apenas a forma como eu me movimento, mas também, a forma como eu vivo. E pra mim, parkour é mais do que a 'casca'.

Um agradecimento mais do que especial a minha companheira Marina Neves e ao Gustavo Ivo do Parkour Salvador pela ajuda com o texto e por me instigar a sentir e me expressar.

Bons treinos!

Atenciosamente, um traceur.

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