Querido diário, hoje o conteúdo do post será voltado para
uma reflexão que tem tomado minha atenção nas últimas semanas. Questionamentos
que me fizeram buscar nas minhas origens as razões de fazer o que eu faço.
Provavelmente as ideias a seguir cairão num clichê, num modo apaixonado de se
enxergar o Parkour. Todavia, achei interessante deixar registrados esses
pensamentos particulares para basear e facilitar futuros diálogos.
É muito difícil
escrever sobre a maneira que interpreto a disciplina, pois de alguma forma
sinto que ao exteriorizar minha forma de ler as entrelinhas dos percursos acabo
deixando de lado o modo como outros praticantes fazem isso. Por essa razão na
maior parte dos meus textos busco trazer argumentos fundamentados por outras
pessoas, de forma a respeitar o que já está documentado em fontes consideradas
“confiáveis”. Isso é basicamente seguir uma premissa científica de revisão
bibliográfica. Mas apesar de ser um método universalmente aceito de se fazer
pesquisas, tenho sentido que eu me abstive de sentir efetivamente o que o
parkour sempre me proporcionou pra me pautar exclusivamente no que outros
tinham a dizer.
Deixar de me ouvir fez com que grande parte da minha
motivação se esvaísse pelas brechas deixadas na falta de argumentos
científicos. Por isso resolvi meditar um pouco para resgatar o sentimento que
me manteve de pé, mesmo quando via todos ao meu redor caindo. Não que o
conhecimento científico tenha me atrasado, mas em algum ponto eu me
desequilibrei. Deixei de sentir apenas para pensar. Estou recobrando o
equilíbrio entre essas duas coisas. Por essa razão, esse texto não tem a menor
pretensão de atingir grandes públicos nem mesmo de confrontar nenhum ponto de
vista que seja diferente ou até antagônico ao meu. Simplesmente quero expressar
um pouco do que meu coração tem pra dizer.
Já escrevi sobre o que é parkour em outro post, e existem
muitos outros textos e vídeos pela internet que explicam de forma bem didática
do que se trata a atividade, então não vou me aprofundar nesses mesmos pontos,
a proposta aqui é outra. Como disse, essa é a minha forma de enxergar a
prática.
Enfim... Deixa eu parar de enrolação.
“Parkour está em tudo o que faço, na forma como eu vivo e vejo o mundo ao meu redor.”
Esta frase contém um componente muito particular. Uma forma
individual de ler e sentir a prática. Algo que nasce dentro de um método de
movimentação e se expande para uma mentalidade que cerca e norteia praticamente
todo meu caminho.
Vejo parkour como uma forma de construção de
autoconhecimento e movimentação útil. Entendo “movimentação útil” como o domínio corporal da forma mais completa
possível, compreendendo as ações e razões que te levam a isso. Aprendemos a
utilizar nosso corpo em totalidade para desenhar no ambiente infinitas formas
de desafiar a si mesmo e dessa forma ampliar cada dia mais a funcionalidade e
percepção do nosso corpo.
Temos em nosso corpo centenas de ossos e músculos conectados
de diversas formas, formando alavancas que nos dão possibilidades incríveis de
movimentação. O parkour é usado pra dar sentido a todas essas alavancas e
torná-las funcionais, a fim de sermos capazes de explorar o ambiente que nos
cerca. Tornar obstáculos em possibilidades e fazer d’uma ferramenta de
liberdade aquilo que antes nos cercava, prendia e impedia.
Acredito que todas as pessoas ao nascerem iniciam esse
processo de exploração do mundo com o próprio corpo. Vejo como as crianças
aprendem e interpretam o mundo com brincadeiras e experiências de exploração.
Ainda que não saibam, estão se desenvolvendo enquanto buscam o seio materno com
a boca, engatinham, sobem em árvores, pulam nas pedras de seu quintal, correm
livremente pelo pátio durante o recreio e andam pelas guias da calçada como se
fossem cordas bambas. Mas infelizmente grande parte é desencorajada a explorar
o mundo pelos adultos, e até repreendidos por isso. Dessa forma somos
‘educados’ a não experimentar todas as dimensões do que poderíamos alcançar,
utilizando amplamente nosso sistema motor.
É como se o controle
sobre nosso corpo tivesse, em algum ponto do nosso crescimento, entrado no
piloto automático, e com o parkour voltássemos a controlar nossos movimentos
manualmente. Desta maneira fortalecemos nosso corpo e a percepção de
diversas formas. Em outras palavras, voltamos a aprender através dos desafios
provindos da exploração do mundo a nossa volta. Esse confronto com os
obstáculos encontrados durante a exploração de percursos no ambiente nos força
a sair da zona de conforto e atingirmos níveis de compreensão sobre nós mesmos
que não imaginaríamos que seria possível.
É através dessa mesma
compreensão que é formada, a meu ver, a essência do parkour.
É quando estou a
fluir por entre a paisagem, passando por blocos de concreto, escalando árvores
cascudas e espinhentas, aterrissando em pedras escorregadias, equilibrando-me
em corrimãos e saltando por fendas profundas que é desperto em minha mente o
ponto mais crucial da prática.
“Por que me tornar forte? Por que me tornar hábil? Por que tantas
repetições só pra subir uma parede de uma forma fluída, leve, rápida e
eficiente? Ninguém me dará uma medalha por isso, então por que continuar?”
Essas perguntas não se respondem apenas na movimentação em
si. Saltar mais alto, mais longe, ficar mais forte, mais rápido, mais
resistente, ser capaz de realizar proezas extraordinárias e acrobacias que
impressionam até mesmo dublês experientes... Tudo isso são consequências reais
e até bem tangíveis dentro da prática, mas ainda assim não representam o
propósito real daquelas perguntas. Isso porque elas remetem a introspecções
muito mais profundas, que vão além da dimensão meramente física ou ‘tecnicista’
dos movimentos.
Quando chego ao fundo da reflexão, enxergo que não estou
mais fazendo aquilo simplesmente pelos ganhos físicos. O parkour ganhou um
sentido, um significado enraizado na maior parte das minhas concepções. Eu me
movo pelo aprendizado carregado em cada situação de adversidade pela qual
passei. Por cada erro cometido, cada medo vencido, por cada obstáculo deixado pra
trás, pela pessoa que me tornei e o mais importante, pela pessoa que quero me
tornar.
Como eu já disse, passei a enxergar o parkour em tudo. Na
arquitetura ao meu redor, nas possibilidades de caminhos escondidos na cidade,
na forma como caminho, na forma como me comporto perante a sociedade, na forma
como interajo com outras pessoas e até na forma como encaro problemas.
O parkour me ensinou que não basta ser forte, se esta força
não for direcionada para algo útil, algo produtivo, algo que efetivamente ajude
a mim ou a alguém no decorrer da minha vida. Ainda que eu nunca precise sair de
um prédio em chamas. Ainda que eu nunca precise salvar alguém em uma situação
de perigo. Ainda que essa força me sirva como uma simples forma de expressão
corporal. Se eu conseguir utilizar a sabedoria desenvolvida nos meus momentos
de treino para persistir em um momento difícil da minha vida, usar minha
experiência com o medo para aconselhar e guiar uma única pessoa para um caminho
positivo, se me serviu apenas para aprender a apreciar e respeitar coisas
pequeninas da vida e da natureza, se o parkour serviu unicamente para conhecer
as pessoas incríveis que conheci e estabelecer vínculos tão preciosos pra mim,
então vou poder olhar com orgulho para cada calo aberto, cada gota de suor,
sangue e cada lágrima derrubada, cada bolha de sangue no pé, cada queda, cada
vez que me achei fraco e incapaz e dizer com o peito cheio de alegria que valeu
cada segundo investido, que o parkour realmente foi útil na minha história.
Através de todo esse aprendizado que tive durante meu
percurso, percebi que meu comportamento reflete diretamente na imagem que eu
tenho de mim mesmo, e que se eu não puder ser humilde e aceitar meus erros eu
nunca poderei melhorá-los. Mostrou que existem obstáculos em meu caminho que
não vão medir esforços em me mostrar o quanto sou fraco, mas que esses
obstáculos podem ser utilizados como treinamento para fortalecer o meu corpo, a
minha mente e o meu caráter. E entre tantos outros ensinamentos, me ensinou
como ser uma pessoa melhor, mais digna, e mais útil para o ambiente em que eu
vivo. Afinal, movimentar-se de uma maneira mais funcional, dominar o meu corpo
e explorar o ambiente é apenas a “casca” do parkour, porém, o conteúdo trazido
de toda essa experiência é o que realmente conta na flow, que eu chamo de vida.
Por isso, o parkour está presente em todos os aspectos da
minha vida. Extrapola o momento em que eu me movimento, e envolve toda energia
que eu tenho pra viver e pra dedicar às coisas do meu dia-a-dia. Pois se eu sou
capaz de vencer desafios ininterruptos enquanto eu treino, por que não seria
capaz de vencer desafios na minha vida cotidiana? Se sou capaz de chegar até
lugares onde muitos julgariam impossível, por que não fazer isso na minha vida
profissional? Se sou capaz de tratar com respeito meus colegas de treino e o
lugar onde treino, por que não fazer isso com o ambiente em que vivo e com as
pessoas ao meu redor?
É através desse constante exercício de maiêutica que me
torno apto a mudar para alguém mais consciente e sábio, para mim e para a
sociedade. Afinal como já disse Sócrates, “Conhece-te a ti mesmo e conhecerá
todo o universo”.
Portanto, parkour
está presente em todos os detalhes particulares da minha vida, pois vem da
mentalidade construída através de todos os meus anos de experiências e treinos.
Fatores que moldaram não apenas a forma como eu me movimento, mas também, a
forma como eu vivo. E pra mim, parkour é mais do que a 'casca'.
Um agradecimento mais do que especial a minha companheira
Marina Neves e ao Gustavo Ivo do Parkour Salvador pela ajuda com o texto e por
me instigar a sentir e me expressar.
Bons treinos!
Atenciosamente, um
traceur.
Parabéns pelo texto. Expressou muito bem o que sinto em relação a bagagem adquirida pelo Parkour.
ResponderExcluirValeu Rafael :)
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