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sexta-feira, 24 de abril de 2015

#1 - O Que é Parkour?

Querido diário, hoje irei começar o primeiro dia de postagens oficiais sobre o mundo do parkour na minha ótica e perspectiva.
Nada mais justo que começar essa caminhada refletindo e elucidando uma das perguntas mais frequentes que ouço das pessoas que não conhecem o que eu faço: “Afinal, o que é parkour?”.
Responder a essa pergunta é simples e ao mesmo tempo complexo, afinal, numa realidade onde a maioria dos vídeos (de parkour) que viralizam por aí mostram justamente o oposto do que pregam os valores da prática, mostrar para um leigo do que se trata a disciplina por trás da movimentação torna-se uma tarefa verdadeiramente desafiadora.
Para responder esta pergunta eu tentarei seguir uma linha que vá de acordo com as principais referências internacionais do parkour hoje, de modo a respeitar a visão dos próprios criadores e a abranger ao máximo toda a potencialidade que a prática desenvolveu com o tempo. Para isto, tentarei usar aqui o máximo de referências científicas relacionadas com o parkour, entrevistas com os criadores e parte da teoria passada durante o curso do A.D.A.P.T. Também, não usarei aqui nenhuma referência que não tenha plena confiança em seu conteúdo e veracidade.
A partir de agora muitos mitos que são repetidos por muito tempo pelos praticantes serão discutidos, e com certeza quem não faz ideia do que é parkour terá uma base mais aprofundada para começar a entender a disciplina, além de entender que a prática é muito mais complexa do que é mostrado na maior parte dos vídeos e filmes atualmente. Lembrando que o objetivo deste texto não é o de aprofundar-me na história do parkour, e sim focar na explicação do que se trata a atividade. Obviamente me basearei em alguns pontos específicos da linha do tempo da disciplina, mas sem atentar especificamente na história em si (isso ficará para um outro post). Sem mais delongas.
Julie Angels em sua tese de doutorado explica parkour/l’art du deplacement/freerunning como: “ Um método de treinamento físico e uma maneira particular de se pensar sobre movimentação e um mapeamento espacial criativo. É uma atividade física e mental que envolve apenas a utilização do corpo para superar obstáculos (físicos e mentais) em um percurso. Isso pode envolver correr, escalar, vaultear*, saltar, se equilibrar, ou qualquer outra forma física de se mover de um ponto a outro. Alguns simplificam isso afirmando se tratar de encontrar uma forma de sair de um ponto A e se chegar a um ponto B. É um método que envolve aprender a superar seus medos e limitações através do aprimoramento da relação entre corpo e mente e da coordenação de sua própria movimentação em qualquer terreno.”.

A definição de Angels é uma definição bastante completa da prática.
Quem é de fora do mundo do parkour provavelmente está se perguntando: “Mas l’art Du deplacement? Freerunning? WTF?”
Apesar de essa diferenciação na nomenclatura ser completamente inútil, é paradoxalmente necessário contextualizar os leigos sobre essas diferentes nomenclaturas e o que significam. Justamente porque neste ponto, muitos praticantes já devem estar tendo comichões e coçadinhas no corpo inteiro quando viram que Parkour/l’art Du deplacement/freeruning são explicados como a mesma coisa. Pois é, Parkour, l’art du deplacement e Freerunning são, na realidade, a mesma prática, aplicadas como expressões diferentes em situações e tempos diferentes. Já explicarei o porque.

Antes de avançar, é necessária uma pontuação. É comum associar a criação da prática unicamente ao Leito, digo, David Belle. Esse é o erro mais comum e provavelmente o mais crítico ao se interpretar a história do parkour. A atividade foi criada por um grupo de pessoas em conjunto que tiveram papéis importantíssimos para o desenvolvimento do que conhecemos hoje como Parkour. Essas pessoas formavam um grupo multiétnico que seria conhecido posteriormente como Yamakasi. Faziam parte dessa “formação original”: Châu Belle-Dinh, Williams Belle, David Belle, Guylain N'Guba-Boyeke, Malik Diouf, Sébastien Foucan, Yann Hnautra, Charles Perrière e Laurent Piemontesi.
A prática do parkour originalmente, não era chamada por um nome, se tratava basicamente de brincadeiras e desafios feitos pelo grupo de amigos nos subúrbios da capital Francesa, mais especificamente Evry, Sarcelles e Lisses. Com o tempo todas essas brincadeiras e desafios foram amadurecendo juntamente a seus envolvidos . Os treinos foram ganharam mais seriedade, profundidade, sentido e aos poucos aquilo foi tornando-se o método de treino e disciplina adotada por eles (para mais detalhes leiam o trabalho de Julie Angels na íntegra). Os garotos foram tornando-se jovens com uma capacidade de movimentação impressionante, sendo reconhecidos pelos moradores da região. Logo surgiu a oportunidade de aparecerem na televisão, mais especificamente em Stad  2 (um canal de televisão francês), com a oportunidade veio também a necessidade de dar ao que faziam um nome (até então a prática era chamada simplesmente por parcours , palavra francesa que quer dizer ‘percurso’). Foi então que em 1997, graças a oportunidade de aparecer na televisão, o grupo achou necessário uma forma de se referir a prática. Sebastien Foucan então sugeriu o nome “l’art Du deplacement”, ou em português, “arte do deslocamento”.  O grupo se identificou com o nome mas acabou se separando depois disso. David Belle, nesse mesmo ano, por uma questão de marketing adotou o nome “Parkour”, uma referência ao “parcours Du combatant” que era praticada por seu pai (e que discutiremos mais em um outro DDT) e um segundo nome para a mesma prática, fazendo desta uma marca, algo pelo qual Belle viria ser reconhecido como “dono” posteriormente e faria uma ligação direta com o que aprendera com seu pai, Raymond. Mais tarde, Sebastian Foucan durante o documentário “Jump London” no canal inglês Channel 4 trás a tona um terceiro nome para a mesma prática, Freerunning, nome este que desencadearia uma interpretação mundial totalmente distorcida da real intenção de Foucan. Seu objetivo era apenas mostrar ao público inglês a sua interpretação da mesma prática que sempre treinou e graças a sugestão de Guillame Pelletier, acreditou que um nome em inglês resultaria num maior apelo com o público britânico. Mas, como o ser humano é um bicho idiota, cada um interpretou as 3 nomenclaturas de uma forma, e criou-se uma errônea separação entre as práticas. Hoje sabe-se que elas representam a mesma essência e os mesmos valores e portanto são apenas nomenclaturas diferentes adotadas em contextos diferentes para se dirigir a mesma atividade. Nós costumamos utilizar o termo “Parkour” como mais aceito apenas para facilitar a comunicação. (O Bruno Peixoto, diretor da ParkourGenerations Brasil, explica muito melhor toda essa confusão neste vídeo)

A própria Julie Angels explora os conceitos de cada nomenclatura em seu trabalho e afirma não parecer haver distinção entre elas. “Eu irei me referir como parcours, l’art du deplacement, parkour e freerunning durante a tese dependendo do contexto histórico e das informações vindas dos informantes. [...] Eu acredito ser importante a distinção entre as respectivas disciplinas como isso aprofunda as identidades dos fundadores, mesmo que as práticas pareçam ser a mesma coisa para um leigo ou mesmo na perspectiva de um traceur” (Angels, J. Ciné Parkour:a cinematic and theoretical contribution to the understanding of the practiceof parkour. Página 15)
Angels claramente deixa claro neste parágrafo que a importância de diferenciar as práticas se justifica apenas para uma abordagem histórica, e que a diferenciação se dá pelas 'identidades dos criadores', ou seja, ego. Claro que cada um dos criadores queria a sua 'fatia do bolo', e gostariam de ser reconhecidos pela criação de algo, então, no primeiro desentendimento que aconteceu (no caso, por conta do nome) cada um pegou suas coisas e buscou reconhecimento da sua própria maneira. Porém, essa divisão por ego, não descaracteriza a mesma essência, os mesmos valores e a mesma disciplina praticada por todos, toda esta zona teve início apenas por orgulho.

Portanto,  Pk/Fr/Add, representam a mesma disciplina, com os mesmos valores e a mesma essência. Nós costumamos adotar a nomenclatura “Parkour” para se referir a prática para facilitar a comunicação (E isso, inclusive é passado durante o curso de formação de instrutores da Parkour Generations, o ADAPT ).

Devidamente contextualizados com os termos, vamos prosseguir.

O Parkour traz na sua essência, influências de várias modalidades diferentes. Possui técnicas ginásticas de fortalecimento, padrões de movimentação parecidos com o atletismo, níveis de desafios encontrados na escalada livre, autodisciplina e concentração das artes marciais, semelhanças indubitáveis do parcours Du combattant e por aí vai. Inclusive os criadores eram praticantes de diversas modalidades diferentes, como mostra o próprio Ciné Parkour de Angel e entrevistas com os criadores.

Basicamente o Parkour utiliza-se de uma série de técnicas e padrões de movimentação aplicadas em conjunto para movimentar-se no ambiente utilizando o próprio corpo como veículo para transpor obstáculos, explorando o mundo de maneira desafiadora e divertida.

Trabalhamos com a ideia de que podemos utilizar nosso corpo de diversas formas diferentes a fim de fortalecê-lo, aprender a controlá-lo, desafiá-lo e dessa maneira sair da zona de conforto, buscando continuamente uma forma de ser e fazer melhor.

Quando falamos da utilização do corpo de diversas maneiras e se tornar melhor com isso, uma boa forma de se orientar é através do trabalho de George Hebérts, o “Methode Naturelle”. Em uma viagem a África ele observou tribos indígenas e como as pessoas nestas tribos tinham corpos fortes, resistentes e úteis para a comunidade em que viviam. Se espantou em observar que apesar de serem extremamente fortes, eles não passavam por nenhuma forma específica de treinamento, não haviam academias e nem nada do tipo. Seu único instrutor era apenas seu dia-a-dia na natureza. Em seu trabalho Hebérts defende que um corpo útil deve ser forte. Útil em uma situação de emergência, útil sendo altruísta, útil sendo autônomo, útil sendo eficiente e capaz... enfim. Daí então vem o principal lema de sua filosofia: “Etre fort per Etre utile” ou, em português “Ser forte para ser útil”. Este se tornou um dos lemas mais fortes dentro do parkour, sendo levados a sério por muitos em seus treinos. Heberts então, através de suas observações dividiu os padrões naturais de movimentos humanos em 10 famílias. São elas:



·         Andar
·         Correr
·         Saltar
·         Escalar
·         Quadrupejar
·         Equilibrar
·         Levantar e carregar cargas
·         Arremessar cargas
·         Se defender
·         Nadar



Esta classificação norteia bastante a prática do parkour, pois como “utilização dos padrões de movimentação” queremos dizer exatamente isto.
Nós corremos, saltamos, escalamos, nos equilibramos, rolamos, rastejamos e utilizamos todo o tipo de movimentação ao nosso alcance para ultrapassar obstáculos e nos tornarmos fortes.

Charles Moreland, da Rochester Pk de Nova York, em uma palestra para a TED fala muito sobre os comodismos contemporâneos. Vivemos hoje numa sociedade acomodada a rotinas. Acordar, sentar pra comer, transitar num carro ou ônibus, trabalhar sentado, sentar pra descansar e assistir televisão ou jogar videogame e deitar pra dormir. Comparando isso as variedades de movimentação idealizadas por Hebérts, quantos destes padrões deixamos de lado tendo em vista as facilidades tecnológicas e ergonômicas da vida moderna?
O Parkour traz a ideia de que somos capazes de sair da zona de conforto imposta pela sociedade em que vivemos atualmente. Com partes remanescentes da filosofia autônoma do Methode Naturrelle, parkour prega uma constante evolução em todos os aspectos do desenvolvimento humano, com o objetivo de se tornar uma pessoa autônoma, independente e livre o suficiente para saber fazer suas escolhas baseadas em valores como respeito, honra e humildade. Apesar de ter citado aqui os termos “liberdade” e os “valores” esses dois temas são deveras complexos, e deixaremos isso para um outro post.

Hoje em dia, o parkour foi difundido no solo de várias nações ao redor do mundo. Obviamente isto fez com que cada cultura imprimisse parte de sua cultura na prática, o que fez com que ela se desenvolvesse de uma forma positiva e negativa ao mesmo tempo, explicarei o porque.
 Se pegarmos Traceurs aleatórios de cada país do mundo e observarmos atentamente a movimentação de cada um, você notará que, apesar de todos estarem praticando a mesma atividade, cada um se expressa de uma forma particularmente única. Essa diferença, na minha humilde opinião é melhor visualizada principalmente na movimentação de Russos, Franceses e Ingleses... cada um pende para uma forma de movimentação única, que eu realmente acredito ser a impressão da própria personalidade cultural dentro da prática. Eu não tenho absolutamente nada científico que sustente essa minha teoria, mas adoraria ver um debate ou uma iniciativa acadêmica abordando este tema. Em todo caso, visto que o parkour se enraizou de forma subjetiva em cada lugar, o desenvolvimento da prática ao passar dos anos também passou a abranger uma imensidão de padrões e formas de se interpretar a atividade. Isso é:
1 – Positivo, pois isso fez com que o Parkour se enriquecesse ainda mais com visões, filosofias e motivações diferentes. Dessa forma cada cultura agregou algo para a atividade e cada pequena adição fez com que o parkour desenvolvesse uma potencialidade maior e maior.
2 – Negativo, pois juntamente a propagação absurda que a prática obteve, veio também a diluição de valores essenciais do Parkour, como respeito ao próprio corpo e importância do fortalecimento e de um treino consciente, valores que em geral podem ser resumidos em “Ser e Durar” (Outro lema do Método Natural adotado pelo Parkour que prega que deve-se sempre treinar pensando em respeitar seu corpo para treinar sempre, afinal, de nada adianta um drop de 6 metros de altura hoje, se amanhã vai estar com dores e nem aguentando andar, que dirá treinar, em todo caso este é um tema que merece uma atenção particular, e trataremos disso num próximo post). Como prova disso temos hoje vários iniciantes querendo treinar parkour só pra aprender a virar mortal, só pra gravar vídeos ou impressionar as outras pessoas, isso não apenas oferece perigo para o próprio praticante como passa a ideia errada do que se trata o parkour. O sempre gostoso Chris Rowatt, da Parkour Generations, fala mais especificamente sobre esse tema aqui.
Enfim, atualmente o parkour é praticado de uma forma bem diferente do que era originalmente, a prática evoluiu e hoje temos uma visão bem ampla da modalidade, que envolve desde interpretações artísticas com performances impressionantes até autodisciplinas regradas focadas em ajudar o próximo e tornar-se melhor.

Conceituar o Parkour atualmente é uma tarefa bem desafiadora, mesmo para os praticantes mais experientes. Ainda não existe uma linha de pensamento que chegue a um consenso sobre o real conceito de Parkour. Por vezes ele é citado como um esporte, arte, disciplina ou filosofia. A falta de estudos aprofundados na área torna a busca pelo real conceito do Parkour extremamente subjetiva. Não é o objetivo deste post o estabelecimento de um conceito predominante. Aqui direi apenas que você pode entender Parkour como quiser, menos como esporte.
Barbanti cita que para uma atividade ser caracterizada como esporte, esta deve acontecer sobre condições específicas. “o esporte é caracterizado por alguma forma de competição que ocorre sob condições formais e organizadas.”. Parkour é na sua essência uma atividade não competitiva, como cita Foucan, em seu livro Find Your Way, David Belle e milhares de outros tracers ao redor do mundo. “Creio que o objetivo principal do Parkour seja nos tornarmos completamente autônomos em nossas vidas.”, “Treinamos para quando encontrarmos um problema, sermos capazes de enfrentá-lo” (citações de David Belle na entrevista “Eu salto de telhado em telhado”). Barbanti cita ainda que “o fenômeno esporte envolve uma atividade física competitiva que é institucionalizada.”. Não existe ainda uma federação internacional que fiscalize a prática do Parkour a nível institucional, e que estabeleça padrões ou regras para a prática da atividade. Então em resumo, seguindo a linha de pensamento de Barbanti, Parkour não é institucionalizado, não acontece sob um conjunto de regras, portanto não há maneira de se haver competição. E já que o Parkour não acontece sob as condições de um esporte, não pode ser considerado um esporte, pelo menos por enquanto.
Portanto meu amiguinho,não, parkour ainda não é um esporte, porém nada impede que venha a se tornar um dia.

Pra finalizar esse post IMENSO, vou deixar aqui uma definição que eu particularmente acho bem completa.

Parkour é uma atividade que consiste na utilização de técnicas corporais como correr, saltar, escalar, rolar e se equilibrar para explorar o ambiente de uma forma desafiadora e divertida. Trata-se do processo de preparo que tem por objetivo aprender a lidar com obstáculos de natureza física (muros, corrimãos, lixeiras, bancos, arvores...) e mental (medo, insegurança, autoestima e etc).

Além de ter lido esse texto e estudar em outras referências também, uma boa forma de entender o que é realmente Parkour é simplesmente praticando. Então se você aí, leu até aqui e ainda não conseguiu entender muito bem, sem problemas, tente começar. Saia um pouco da sua zona de conforto e venha aprender algo novo, o máximo que pode acontecer é você não gostar.

 Poderia ainda escrever por horas aqui até que isto virasse um livro, mas vou parar por aqui. Espero ter contribuído em algo com você que teve a paciência de ler até aqui. Sinta-se a vontade para discordar, debater, criticar e construir conhecimento.

Bons treinos .

PS: Agradecimentos especiais ao Duddu, do Parkour Aracajú e do DCM pela ajuda com o texto.

Atenciosamente:

Um Traceur.

Um comentário:

  1. Muito bom! me empolgou ! eu gostaria de acrescentar também o que acho (rs)...

    Para mim, além de tudo que escreveu eu considero o Parkour como uma forma de educação dos sentidos: Aprender a ouvir, não só externamente, a sentir, não só internamente, a ver, com o corpo inteiro, respirar , para além do oxigênio, degustar, além do gosto, preferência e energizar o espirito (6º sentido).

    abraços enérgicos! Obrigado pelo texto!

    Índio Medeiros

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