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sábado, 3 de outubro de 2015

#5 - A casca do Parkour

Querido diário, hoje o conteúdo do post será voltado para uma reflexão que tem tomado minha atenção nas últimas semanas. Questionamentos que me fizeram buscar nas minhas origens as razões de fazer o que eu faço. Provavelmente as ideias a seguir cairão num clichê, num modo apaixonado de se enxergar o Parkour. Todavia, achei interessante deixar registrados esses pensamentos particulares para basear e facilitar futuros diálogos.

 É muito difícil escrever sobre a maneira que interpreto a disciplina, pois de alguma forma sinto que ao exteriorizar minha forma de ler as entrelinhas dos percursos acabo deixando de lado o modo como outros praticantes fazem isso. Por essa razão na maior parte dos meus textos busco trazer argumentos fundamentados por outras pessoas, de forma a respeitar o que já está documentado em fontes consideradas “confiáveis”. Isso é basicamente seguir uma premissa científica de revisão bibliográfica. Mas apesar de ser um método universalmente aceito de se fazer pesquisas, tenho sentido que eu me abstive de sentir efetivamente o que o parkour sempre me proporcionou pra me pautar exclusivamente no que outros tinham a dizer.

Deixar de me ouvir fez com que grande parte da minha motivação se esvaísse pelas brechas deixadas na falta de argumentos científicos. Por isso resolvi meditar um pouco para resgatar o sentimento que me manteve de pé, mesmo quando via todos ao meu redor caindo. Não que o conhecimento científico tenha me atrasado, mas em algum ponto eu me desequilibrei. Deixei de sentir apenas para pensar. Estou recobrando o equilíbrio entre essas duas coisas. Por essa razão, esse texto não tem a menor pretensão de atingir grandes públicos nem mesmo de confrontar nenhum ponto de vista que seja diferente ou até antagônico ao meu. Simplesmente quero expressar um pouco do que meu coração tem pra dizer.

Já escrevi sobre o que é parkour em outro post, e existem muitos outros textos e vídeos pela internet que explicam de forma bem didática do que se trata a atividade, então não vou me aprofundar nesses mesmos pontos, a proposta aqui é outra. Como disse, essa é a minha forma de enxergar a prática.

Enfim... Deixa eu parar de enrolação.


“Parkour está em tudo o que faço, na forma como eu vivo e vejo o mundo ao meu redor.”

Esta frase contém um componente muito particular. Uma forma individual de ler e sentir a prática. Algo que nasce dentro de um método de movimentação e se expande para uma mentalidade que cerca e norteia praticamente todo meu caminho.

Vejo parkour como uma forma de construção de autoconhecimento e movimentação útil. Entendo “movimentação útil” como o domínio corporal da forma mais completa possível, compreendendo as ações e razões que te levam a isso. Aprendemos a utilizar nosso corpo em totalidade para desenhar no ambiente infinitas formas de desafiar a si mesmo e dessa forma ampliar cada dia mais a funcionalidade e percepção do nosso corpo.

Temos em nosso corpo centenas de ossos e músculos conectados de diversas formas, formando alavancas que nos dão possibilidades incríveis de movimentação. O parkour é usado pra dar sentido a todas essas alavancas e torná-las funcionais, a fim de sermos capazes de explorar o ambiente que nos cerca. Tornar obstáculos em possibilidades e fazer d’uma ferramenta de liberdade aquilo que antes nos cercava, prendia e impedia.

Acredito que todas as pessoas ao nascerem iniciam esse processo de exploração do mundo com o próprio corpo. Vejo como as crianças aprendem e interpretam o mundo com brincadeiras e experiências de exploração. Ainda que não saibam, estão se desenvolvendo enquanto buscam o seio materno com a boca, engatinham, sobem em árvores, pulam nas pedras de seu quintal, correm livremente pelo pátio durante o recreio e andam pelas guias da calçada como se fossem cordas bambas. Mas infelizmente grande parte é desencorajada a explorar o mundo pelos adultos, e até repreendidos por isso. Dessa forma somos ‘educados’ a não experimentar todas as dimensões do que poderíamos alcançar, utilizando amplamente nosso sistema motor.

É como se o controle sobre nosso corpo tivesse, em algum ponto do nosso crescimento, entrado no piloto automático, e com o parkour voltássemos a controlar nossos movimentos manualmente. Desta maneira fortalecemos nosso corpo e a percepção de diversas formas. Em outras palavras, voltamos a aprender através dos desafios provindos da exploração do mundo a nossa volta. Esse confronto com os obstáculos encontrados durante a exploração de percursos no ambiente nos força a sair da zona de conforto e atingirmos níveis de compreensão sobre nós mesmos que não imaginaríamos que seria possível.

 É através dessa mesma compreensão que é formada, a meu ver, a essência do parkour.
 É quando estou a fluir por entre a paisagem, passando por blocos de concreto, escalando árvores cascudas e espinhentas, aterrissando em pedras escorregadias, equilibrando-me em corrimãos e saltando por fendas profundas que é desperto em minha mente o ponto mais crucial da prática.

 “Por que me tornar forte? Por que me tornar hábil? Por que tantas repetições só pra subir uma parede de uma forma fluída, leve, rápida e eficiente? Ninguém me dará uma medalha por isso, então por que continuar?”

Essas perguntas não se respondem apenas na movimentação em si. Saltar mais alto, mais longe, ficar mais forte, mais rápido, mais resistente, ser capaz de realizar proezas extraordinárias e acrobacias que impressionam até mesmo dublês experientes... Tudo isso são consequências reais e até bem tangíveis dentro da prática, mas ainda assim não representam o propósito real daquelas perguntas. Isso porque elas remetem a introspecções muito mais profundas, que vão além da dimensão meramente física ou ‘tecnicista’ dos movimentos.

Quando chego ao fundo da reflexão, enxergo que não estou mais fazendo aquilo simplesmente pelos ganhos físicos. O parkour ganhou um sentido, um significado enraizado na maior parte das minhas concepções. Eu me movo pelo aprendizado carregado em cada situação de adversidade pela qual passei. Por cada erro cometido, cada medo vencido, por cada obstáculo deixado pra trás, pela pessoa que me tornei e o mais importante, pela pessoa que quero me tornar.

Everything is kung fu - karate kid

Como eu já disse, passei a enxergar o parkour em tudo. Na arquitetura ao meu redor, nas possibilidades de caminhos escondidos na cidade, na forma como caminho, na forma como me comporto perante a sociedade, na forma como interajo com outras pessoas e até na forma como encaro problemas.

O parkour me ensinou que não basta ser forte, se esta força não for direcionada para algo útil, algo produtivo, algo que efetivamente ajude a mim ou a alguém no decorrer da minha vida. Ainda que eu nunca precise sair de um prédio em chamas. Ainda que eu nunca precise salvar alguém em uma situação de perigo. Ainda que essa força me sirva como uma simples forma de expressão corporal. Se eu conseguir utilizar a sabedoria desenvolvida nos meus momentos de treino para persistir em um momento difícil da minha vida, usar minha experiência com o medo para aconselhar e guiar uma única pessoa para um caminho positivo, se me serviu apenas para aprender a apreciar e respeitar coisas pequeninas da vida e da natureza, se o parkour serviu unicamente para conhecer as pessoas incríveis que conheci e estabelecer vínculos tão preciosos pra mim, então vou poder olhar com orgulho para cada calo aberto, cada gota de suor, sangue e cada lágrima derrubada, cada bolha de sangue no pé, cada queda, cada vez que me achei fraco e incapaz e dizer com o peito cheio de alegria que valeu cada segundo investido, que o parkour realmente foi útil na minha história.

Através de todo esse aprendizado que tive durante meu percurso, percebi que meu comportamento reflete diretamente na imagem que eu tenho de mim mesmo, e que se eu não puder ser humilde e aceitar meus erros eu nunca poderei melhorá-los. Mostrou que existem obstáculos em meu caminho que não vão medir esforços em me mostrar o quanto sou fraco, mas que esses obstáculos podem ser utilizados como treinamento para fortalecer o meu corpo, a minha mente e o meu caráter. E entre tantos outros ensinamentos, me ensinou como ser uma pessoa melhor, mais digna, e mais útil para o ambiente em que eu vivo. Afinal, movimentar-se de uma maneira mais funcional, dominar o meu corpo e explorar o ambiente é apenas a “casca” do parkour, porém, o conteúdo trazido de toda essa experiência é o que realmente conta na flow, que eu chamo de vida.

Por isso, o parkour está presente em todos os aspectos da minha vida. Extrapola o momento em que eu me movimento, e envolve toda energia que eu tenho pra viver e pra dedicar às coisas do meu dia-a-dia. Pois se eu sou capaz de vencer desafios ininterruptos enquanto eu treino, por que não seria capaz de vencer desafios na minha vida cotidiana? Se sou capaz de chegar até lugares onde muitos julgariam impossível, por que não fazer isso na minha vida profissional? Se sou capaz de tratar com respeito meus colegas de treino e o lugar onde treino, por que não fazer isso com o ambiente em que vivo e com as pessoas ao meu redor?

É através desse constante exercício de maiêutica que me torno apto a mudar para alguém mais consciente e sábio, para mim e para a sociedade. Afinal como já disse Sócrates, “Conhece-te a ti mesmo e conhecerá todo o universo”.

Portanto, parkour está presente em todos os detalhes particulares da minha vida, pois vem da mentalidade construída através de todos os meus anos de experiências e treinos. Fatores que moldaram não apenas a forma como eu me movimento, mas também, a forma como eu vivo. E pra mim, parkour é mais do que a 'casca'.

Um agradecimento mais do que especial a minha companheira Marina Neves e ao Gustavo Ivo do Parkour Salvador pela ajuda com o texto e por me instigar a sentir e me expressar.

Bons treinos!

Atenciosamente, um traceur.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

#4 - Parkour e escolhas (Desabafo)

Querido Diário, hoje estou escrevendo com um propósito completamente diferente do habitual. Ao invés de passar uma idéia baseada em um método mais científico, cheio de referências, resolvi exercitar um pouco meu poder de raciocínio filosófico e escrever algo mais direcionado a uma opinião.

Estive pensando em escrever algo do tipo a um tempo, mas o que me motivou a concretizar essa idéia foi uma conversa que tive com um amigo sobre nossas escolhas.

Tenho visto alguns iniciantes reclamarem de serem alvos de críticas quando começam a treinar sozinhos, e por pressão dos pais, amigos, vizinhos e a sociedade como um todo acabam por desanimar e desistir de treinar. Este texto é uma forma de tentar explicar e entender o que acontece e de compartilhar um jeito de se motivar mesmo frente a um mundo preconceituoso e reacionário, afinal, se alguém decide se aventurar para embarcar em uma nova jornada, acho justo deixá-lo ciente do que você pode vir a passar. Talvez algo neste texto te ajude a refletir e construir argumentos para dialogar daqui pra frente.

 Estando presente em uma prática que é alvo de constante preconceito por parte dos desinformados e até mesmo uma certa agressividade por parte de outros eu já estou calejado no que diz respeito a críticas e tentativas externas de me fazer desistir das escolhas que eu fiz e faço. Então aqui vai um ponto de vista de alguém que ainda sofre essas mesmas pressões que você, meu caro iniciante.

Vejo hoje uma sociedade cômoda em acreditar que as escolhas feitas pela maioria são irrefutavelmente as melhores a serem tomadas. A descrença em algo que é novo e segue a contramão do status quo é nítida, e em grande parte das vezes esta descrença é baseada no simples fato daquilo ser diferente. Tomo como exemplo as “famílias tradicionais”, que acreditam que qualquer coisa diferente do que a maioria diz seguir é, automaticamente, uma abominação. Infelizmente esse exemplo é o que representa hoje uma enorme parcela da sociedade que prega que o “certo” é convenientemente fazer o que todos fazem. Eu costumo chamar essas pessoas reacionárias de “moda”. E isso abrange todas as culturas de tal forma que conseguimos até caracterizar um padrão. Pessoas sem uma mentalidade própria, que simplesmente replicam argumentos usados por outros, seguem uma linha industrial robótica desde a maneira de se vestir até a maneira como enxergam a vida e a si mesmos. Esses ‘modas’ são a principal força que faz com que mudanças na sociedade aconteçam de forma tão lenta ao longo dos anos (em alguns casos essa resistência é até positiva, mas vou generalizar).

O problema em questão não é a opinião pessoal em si, na verdade ele começa quando pessoas que vivem na própria concha de comodismo pregam categoricamente que as outras pessoas devam fazer o mesmo. Sair da zona de conforto social não é algo simples e nem fácil, mas gostaria aqui de rebater algumas idéias que tenho visto serem replicadas quase sistematicamente, e que no meu ponto de vista, não são saudáveis para o bom convívio e mesmo para o desenvolvimento da sociedade em si.

 Fórmula do sucesso ou fórmula da felicidade

As pessoas tem o costume de buscar fórmulas mágicas que ensinem como ter sucesso em suas carreiras ou em suas vidas, ou pior, tentam pregar religiosamente que algo da certo ou errado UNICAMENTE pelo fato de ser a maneira como ELA, e somente ela, fez. Como exemplo vou usar a questão dos concursos públicos. Eu duvido que alguém com mais de 20 anos nunca tenha ouvido de outras pessoas como é bom passar em concurso público, ter estabilidade na profissão e toda essa papagaiada. De fato, concurso público é uma forma de se levar a vida, e muitas pessoas com certeza se deram bem e são felizes dessa forma. MAS ISSO NÃO ESTABELECE UMA REGRA. Não é porque uma pessoa é feliz sendo funcionário público que outra também vai ser. Ás vezes tudo que a pessoa quer é tentar ser autônoma, tentar construir a vida independendo do governo. E o contrário também é real, não é porque uma pessoa não deu certo na vida de funcionário público que isso não seja possível.

A grande verdade nessa história é que NÃO EXISTE UMA FÓRMULA. Já ouvi até argumentos do tipo: “Mas você tem mais probabilidade estatística de ter estabilidade em um concurso do que como autônomo” (seguindo o mesmo exemplo anterior). E ainda que mostrem inúmeros dados (se é que existem) ou exemplos que corroborem com este argumento a verdade é que VIVER NÃO É UMA CIÊNCIA EXATA. Nós somos seres humanos completamente diferentes individualmente, existe algo chamado individualidade biológica, que prova por A + B que cada ser humano é diferente biologicamente. Além disso nenhuma pessoa nasce, cresce e se desenvolve de maneira igual. Somos educados de forma diferente e passamos por experiências diferentes em nossas vidas, além do que, temos capacidade de aprender e mudar nossas opiniões no decorrer dos anos. Ou seja, O QUE DA CERTO PRA UM, NÃO NECESSARIAMENTE DA CERTO PRA OUTRO. Quer outro exemplo de que viver não é uma ciência exata? Então vamos lá, imagine agora que você conheceu uma pessoa e se apaixonou, você quer namora-la, mas antes tem que confiar nela. Como saber que essa pessoa não te trairia, por exemplo? Tem como ter certeza? Óbvio que não, afinal você não prevê o futuro (Caso preveja, me add no facebook, quero saber qual o resultado da próxima mega sena). O que dá pra fazer então? No máximo reunir dados que forneçam uma análise de probabilidade. Você pode fazer um exame no indivíduo pra ter noção de um perfil psicológico dele, se ele tem uma pretensão maior ou menor a mentir ou coisa parecida. Ainda pode pesquisar o histórico da pessoa para saber se ela já traiu em algum outro namoro anterior, quantas vezes.... etc. De uma maneira geral você terá bons indícios para deduzir qual a chance dessa pessoa te trair, afinal você tem uma base estatística que fomentam essa possibilidade, certo? ERRADO! Você está desconsiderando totalmente que a pessoa em si pode mudar, pode amadurecer, então mesmo que essa pessoa tenha traído todos os namorados antes, agora ela pode estar mudada, pode ainda amar você muito mais do que amou aos outros e ser a pessoa mais tranqüila do mundo ao seu lado. E o contrário também é verdade, mesmo que ela nunca tenha traído antes nada garante que ela não vá te trair. Ás vezes, mesmo com um bom histórico, ela depois de um ano de namoro, sai com as amigas e conhece o Brad Pitt... ela nunca traiu antes, mas naquela noite... (É o Brad cara, até eu pegaria ele). Enfim, entenderam o raciocínio. Nós não podemos prever o futuro, e quando falamos na vida cotidiana nem a estatística pode definir nada, porque as situações mudam, as pessoas mudam e o que era bom em um dia, pode não ser no outro.

Mas então como saber se você pode ou não confiar em alguém?
Aí que tá, você nunca sabe.

 Confiar diz respeito unicamente em assumir um risco, em uma escolha individual seguindo o que vc acredita ser certo naquele momento. Não tem como prever nada, e se tiver que tomar na bunda porque escolheu errado, você vai tomar. MAS ainda que você não conheça pessoas próximas de você que se aventuraram em algo novo e venceram, saiba que você sempre pode ser o primeiro. Mas esqueça completamente essa idéia de “tem algo maior esperando por mim”, não crie expectativas, pois se não há maneiras de assegurar o seu fracasso baseado em estatísticas ou deduções, também não há certeza de sucesso. Confiar é saber que se arriscou, mas o que vai realmente dizer se você irá ou não vencer é apenas o quanto você está disposto a ir até o fim por uma determinada causa, ou, o quão determinado você é.

Então saiba que vivemos numa sociedade que vai te apontar dedos e te julgar. Afinal enquanto todos seguem os mesmos caminhos, nós trilhamos os nossos. Enquanto todos andam na rua olhando pra frente e pra baixo, nós olhamos pra cima pros lados pra trás e pra todas as direções imaginando a infinidade de possibilidades que a cidade te oferece. Convenhamos, nós somos os estranhos. O que fazemos é diferente, e as pessoas normalmente tem medo do que não conhecem, logo, se você se sentir julgado ou rotulado de algo que você não é, acredite, a maioria de nós já passou por isso também.

Por isso, caro traceur, se está disposto a correr o risco de confiar no que você acredita ser certo, então estude muito, treine muito, trabalhe muito. Você vai errar muito, tomar um milhão de portas na cara e vai ser expulso de vários picos, vai tomar abordagens violentas de policiais despreparados e vai ser muito julgado. Mas seu respeito vai ser construído a cada treino, a cada postura tomada ao receber um ‘não’, a cada hora de estudo perdida para construir um argumento melhor e melhor, na sua determinação e na disciplina que terá ao encarar a vida real com o seu espírito traceur.

Lembre que escolher seguir um caminho não é fácil, sair da zona de conforto é mais difícil ainda, lutar contra a maré é ainda mais hardcore e somente vai descobrir o que significa a palavra "persistência" quando tiver passado por tudo isso.


Espero ter contribuído em algo, não desistam, e bons treinos.



Atenciosamente, Um Traceur.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

#3 - Parkour e Disciplina

Querido diário...
Faz um tempo que não escrevo por aqui... Prometi a mim mesmo que faria um post a cada 30 dias, pelo menos, mas acabei falhando com a minha própria meta. Poderia dar aqui um milhão de desculpas do tipo “estava sem tempo para escrever”, “meu notebook está uma porcaria” (apesar de realmente estar) ou coisas do tipo. Mas serei franco e assumirei que fui indisciplinado. Não consegui manter isso como uma prioridade. E é justamente por isso que hoje tratarei deste mesmo tema (mas é claro que você já sabe disso, tá escrito no título).
Ultimamente tenho sido bem pouco disciplinado no que diz respeito ao blog e até mesmo aos treinos. Diversas vezes deixo a preguiça vencer ou dou qualquer outra desculpa que consiga me confortar e me fazer sentir menos lixo por não fazer o que eu deveria estar fazendo. Mas, tive a oportunidade de ir ao 9º Encontro Paulista de Parkour neste fim de semana do dia 25 e 26 de julho, organizado pela primeira vez pela APKSP, e ele me deu um gás pra voltar. Inclusive quero escrever em breve especificamente sobre eventos e encontros de parkour, mas isso vai ficar pra uma próxima oportunidade, porque hoje o foco é: DISCIPLINA.
Como este é um tema EXTREMAMENTE pertinente dentro do contexto do parkour,  gostaria de dar a devida atenção e fazer uma reflexão mais aprofundada e finalizar afunilando isso para a perspectiva do parkour. Então pode ser que este texto fique um tanto complexo e até meio longo (se bem que nessa altura do campeonato, quem acompanha meus textos já sabe que meu blog não é pra nego que lê resuminho de livro pra prova). Em todo caso, se você acha que aguenta o tranco e tem saco pra isso, bora.
É de praxe ler ou ouvir conceituações de parkour que tratam da prática como uma ‘disciplina’, ou mesmo ouvir coisas do tipo “fulano é disciplinado”. Mas o que será que isso quer dizer exatamente?
Disciplina pode ter vários conceitos dependendo do contexto. Pode ser a subserviência às regras, se interpretada por uma perspectiva militar, ou obediência, no sistema escolar. Pode ser encarada como uma área de conhecimento estudada no campo das universidades ou centros de estudo; e até mesmo como um tipo de castigo ou penitência no contexto religioso. Porém o conceito o qual nos referimos quando falamos de parkour diz respeito principalmente à doutrina ou conjunto coerente de ideias fundamentais a serem transmitidas e ensinadas, e principalmente ao comportamento moral do praticante. Este último é explicado de uma forma bem interessante por Kant.
Para Kant o que distingue o comportamento do ser humano dos demais animais é justamente a diferença no modo de agir. Animais são guiados por instintos naturais, que definem suas ações e retratam a natureza de cada espécie. Instintos são impulsos interiores que fazem um animal executar inconscientemente atos adequados às necessidades de sobrevivência própria, da sua espécie ou da sua prole. Kant diz que o ser humano não é dotado de instintos, e como ferramenta para nortear os atos de sua espécie, a natureza deu-nos a razão. Neste pensamento a humanidade á adquirida através do afastamento dos impulsos selvagens dos animais. Justamente aqui, Kant afirma que é através da disciplina que o homem transforma a animalidade em humanidade.
O ser humano é um indivíduo inacabado e, não podendo contar com os instintos nos moldes dos demais animais, cabe a si mesmo, através da reflexão, a tarefa de determinar-se a si próprio de maneira autônoma. Deste ponto de vista “a reflexão permite ao homem ser seu próprio mestre.” (KANT).
Apesar de não ter o mesmo instinto dos animais, o homem possui desejos e caprichos imediatos que podem afastá-lo de seus propósitos primários. A reflexão mostra que o homem não é simplesmente submisso aos impulsos do momento. Ela implica, de outra forma, uma espécie de abandono à satisfação dos desejos mais imediatos. Através da reflexão racional o homem é capaz de dominar seus impulsos e desejos, freando as disposições naturais de agir precipitadamente. Para uma melhor organização social e mesmo individual, é necessário que este homem saiba obedecer a regras, sejam elas internas ou externas (como leis judiciais, por exemplo).
A disciplina favorece o surgimento da obediência. Não uma obediência cega e totalmente heterônoma. Muito menos uma obediência a impulsos e desejos imediatos, mas uma obediência às regras racionais autônomas. A disciplina não é apresentada por Kant como uma espécie de escravidão, mas como um processo necessário para a compreensão que devemos sempre seguir regras. É através da disciplina que o homem aprende a agir de forma refletida e organizada.
Apenas respondendo a seus instintos mais imediatos, o indivíduo não reflete, e não refletindo não proporciona o bom desenvolvimento da razão, único meio possível para o esclarecimento.
De uma forma resumida, a disciplina é a capacidade de se obedecer a regras. Mas não obedecer de maneira cega e robótica, e sim uma obediência refletida, esclarecida e autônoma. Dessa forma afastando aos caprichos, desejos e impulsos irrelevantes na nossa caminhada em direção a uma meta.

Vivemos hoje em um mundo cercado de informações, oportunidades e possibilidades. Tanto que torna-se extremamente fácil perder o foco das coisas que realmente importam e, consequentemente, dispersar-se dos afazeres que deveriam ser prioridade. Dessa forma, acabamos fazendo várias coisas ao mesmo tempo, damos atenção a coisas fúteis e deixamos de focar nossas energias naquilo que seria produtivo para o desempenho dos objetivos e metas que visamos. Perdemos, portanto, a maior coisa que podemos investir para fazer com excelência nossos trabalhos, perdemos tempo.
A disciplina é a capacidade e qualidade de se manter focado nas tarefas necessárias para concretização de uma meta sem se desviar e sem perder a motivação. Em outras palavras, é a capacidade que temos em abstrair de tudo aquilo que não é relevante para a realização de um objetivo.
Disciplina diz respeito a organização interna. Saber dizer ‘não’ para as coisas que não são relevantes naquele momento. Porém, apesar da disciplina ser uma ferramenta fundamental para o exercício da excelência pessoal, uma disciplina sem um direcionamento consistente pode te tornar um robô metódico sem necessariamente um fim estabelecido. O benefício da disciplina só é aproveitado quando há objetivos definidos em cima de um propósito firme e existe uma motivação genuína para conquistá-los. Nesse caso, a disciplina vem para estruturar as atividades e extrair maior excelência no desempenho.

Se você chegou até aqui, parabéns!! Se entendeu tudo, mais parabéns ainda!! Se você está feliz, bata palmas!! (8)
Mas e aí, o que isso tem a ver com parkour mesmo? Relaxa amiguinho, você já deve estar cansado de ler, pode ir fazer um cocô e voltar aqui que já irei linkar as duas coisas.

Pronto? Voltou? Limpou o bumbunzinho? Então vamos lá...


Parkour é uma prática que prega o auto aperfeiçoamento constante, a busca pelo auto conhecimento. Treinamos para sermos praticantes melhores e também, pessoas melhores. Treinamos para aprender a lidar com nossos medos, com nosso corpo, com obstáculos físicos e mentais e pra nos tornarmos pessoas fortes e úteis. Treinamos buscando longevidade, respeitamos nossos corpos e respeitamos o ambiente. É claro que é possível sim treinar com tudo isso em mente, mas, diga-se de passagem, essa não é uma obrigação. Haverão pessoas que não se interessam por nada disso e só querem se divertir. Que simplesmente vêem o parkour como um hobbie, e estas deverão ser respeitadas, e não julgadas. Porém se o seu foco com o parkour é realmente dedicar-se e tornar-se melhor com isso, se você já estabeleceu metas na sua cabeça e realmente quer ser um exemplo de praticante, saiba que tudo isso vai demandar disciplina de sua parte. Pois você terá que saber manter-se firme no seu caminho, dizer não para as coisas que não te ajudam, manter-se focado e não praguejar quando tiver que escolher entre parkour ou seus impulsos e caprichos momentâneos, deverá se tornar um exemplo de comportamento moral e ético. Deverá saber obedecer as regras e respeitar aos valores do parkour.  O comportamento de um bom traceur deve sempre ser disciplinado, e não obstante de atingir suas metas, buscar sempre ser o guerreiro que deve ser.
Acho importante salientar que um traceur disciplinado não é necessariamente aquela pessoa que só treina e não tem vida social, não é aquele neurótico que só respira parkour e “foda-se” o resto, não é aquele fiscal de treino que se acha no direito de julgar aquele que treina menos ou de uma forma diferente que a dele. O traceur disciplinado é aquele que sabendo de suas metas e sonhos não fraqueja, mas consegue manter um equilíbrio saudável de seus desejos e seus deveres.
A razão pela qual o ato de disciplinar-se é importante, principalmente dentro do parkour, é justificada por diversos fatores. O primeiro é pelo fato de o parkour ser uma atividade que envolve principalmente a reeducação do corpo e mente. É impossível educar sem disciplina (como mostra Kant em seu trabalho). O ato de educar e desenvolver seu corpo e sua mente remete a um balanço total na sua rotina, você precisará utilizar métodos que vão exigir o máximo de sua atenção e compromisso para que consiga fazer isso de uma forma coerente e condizente com o sustentável “ser e durar” (já explicado neste post).
O segundo diz respeito à imagem que transmitimos enquanto praticantes. Já sofremos preconceito dos outros naturalmente, imaginem se além desses preconceitos ainda dermos argumentos para recriminarem ainda mais o que fazemos. Por exemplo, usarmos drogas, ficarmos bêbados, arranjarmos brigas, desrespeitarmos os outros na rua, vandalizarmos o pico... Esses exemplos dizem respeito ao lado imoral da coisa. O outro lado diz respeito ao próprio estereótipo que a sociedade vai formar do praticante através de você, por exemplo: você é um praticante que objetiva seguir isto como profissão, seja instruindo ou praticando, que imagem que você passará dos praticantes se você (não serei demagogo) for um fraco, se desistir das coisas logo de cara, se não puder nem fazer um simples climb, se ficar usando o que sabe pra chamar a atenção do sexo oposto (ou do mesmo). Sinceramente, qual a imagem você quer que as pessoas tenham daquilo que você prega? Sem a devida disciplina você acaba manchando e denegrindo aquilo que você mesmo ama fazer.
O terceiro diz respeito a sua organização fora do parkour. Um traceur deve ser um guerreiro em tempo integral, parafraseando Laurent Piemontesi no documentário ‘Geração Yamakasi’: “um guerreiro é um guerreiro em tempo integral, nós não vestimos a roupa de ‘forte’ e saímos na rua para brincar de ser forte e quando chegamos em casa, tudo aquilo é esquecido”. O espírito e disciplina de um traceur devem estar sempre ativos a fim de tornar-se também, uma pessoa melhor com a prática.
E o quarto, pra finalizar, diz respeito ao quanto você quer se dedicar para se tornar bom naquilo que faz. Quantas vezes você deixa sua preguiça vencer? Quantas vezes da desculpinhas para não treinar? Você provavelmente quer saltar mais longe, escalar mais rápido, ganhar mais flow... O quanto você está disposto a sacrificar por isso? Deixaria de ir a baladas para fazer agachamentos? Deixaria de ficar vendo porcarias na internet pra estudar e se aprofundar no parkour? Deixaria de comer porcarias pra se dedicar a uma dieta mais saudável? Deixaria de fumar para ter mais fôlego? Deixaria inclusive de treinar se precisasse descansar seu corpo?  Quer aumentar seu desempenho amigo (a)? Então trate de aprender a obedecer regras, a dizer não para o que for fútil, a sacrificar vícios e a dedicar-se nessa vida. Em outras palavras, trate de ser disciplinado.

Quando aprendemos a agir com disciplina, melhoramos não apenas nossa performance, mas também nossa capacidade de sustentar o parkour e mantê-lo vivo.

Não poderia terminar este tema sem antes recomendar a extraordinária leitura do blog do Santigas sobre este mesmo assunto. (Link aqui)

Espero ter contribuído em algo com você que teve a paciência de ler até aqui. Sinta-se a vontade para discordar, debater, sugerir temas, criticar e construir conhecimento.

Agradecimentos especiais ao Jean Wainer, a Ana StramandinoLLi, ao Duddu Rocha e a Marina Neves com o texto.

Bons treinos .

Atenciosamente
Um Traceur


REFERÊNCIAS





quarta-feira, 10 de junho de 2015

#2 - Os valores do Parkour

Querido diário, resolvi escrever hoje pois cada dia mais torna-se comum ficar diante da seguinte situação quando debate-se com um traceur:

“Zé dus pulo – ‘Parkour é minha filosofia de vida!’; ‘Parkour é meu lifestyle!’; ‘Parkour é a minha vida!’.”


De fato, este é um argumento que deixa claro a intenção de se ilustrar que a prática significa mais que simplesmente saltar de um lado para o outro apenas por lazer. Porém é tangível a falta de base de muitos desses mesmos praticantes para sustentar o Parkour enquanto uma filosofia de vida, ou até mesmo conhecimento sobre os valores essenciais da prática. Diga-se de passagem, que em uma atividade onde lidamos com apropriação e ressignificação de locais, geralmente públicos, faz-se necessária uma linha filosófica digna a gerar um ‘código de ética traceur’ de forma a nortear um padrão de atitudes saudável pra consigo mesmo e com a sociedade. Mas antes de continuar vou deixar claro que não é o objetivo deste texto criar, induzir ou limitar alguma espécie de ’10 mandamentos do Parkour’, e sim apenas discutir alguns do valores que acredito serem essenciais para a mentalidade de qualquer pessoa que deseja se tornar um(a) traceur/traceuse.


A leitura a seguir é bastante extensa, então podem dividir em 2 ou 3 partes, ler metade em um dia e a outra metade no outro, ou ir lendo de pouco em pouco... como preferirem, mas não desistam dela, pois acredito que aprenderão algo bacana no decorrer do post.

O conceito de filosofia é bastante amplo e varia de acordo com a época e filósofo, mas usaremos aqui apenas conceitos mais gerais pra facilitar a compreensão da linha que será criada. Acho interessante antes de continuar, que vocês leiam o absolutamente formidável texto “Parkour, filosofia e ética”, do já citado Bruno ‘Rachacuca’ Peixoto. É sem dúvida nenhuma o melhor texto sobre o assunto que já li, e também, o texto no qual me baseei e inspirei para escrever este post (vocês podem fazer o download do texto inteiro neste link, do falecido pulodogato.com – sdds ç.ç - ).

Filosofia no sentido mais ‘bruto’ quer dizer ‘amor pela sabedoria’ e Pitágoras diz que esse amor é experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância. Nesse sentido, a prática filosófica traz a ideia do exercício da própria razão. Da capacidade de se pensar para aquilo que está além do óbvio (Para uma revisão mais aprofundada sobre o tema da filosofia recomendo este texto). Acredito que a partir daí já conseguimos visualizar a importância do pensar filosófico para o parkour, afinal, nós não temos que criar novos caminhos? Explorar o ambiente de diferentes formas? Pensar para aquilo que está além do senso comum? Devemos constantemente exercitar a capacidade de raciocínio, pois dessa forma, seremos traceurs e pessoas muito mais completas.

Ao pensar no porquê das coisas, passamos a enxergar o parkour como algo muito mais profundo do que simplesmente movimentos, performances acrobáticas ou métodos ginásticos de fortalecimento. Vemos uma disciplina que trás consigo essências e valores que servem para tornar o praticante alguém digno, honrado. Apesar de negligenciados por muitos, o parkour traz consigo valores que são extremamente importantes para a prática continuar a ser o que é, mesmo que ela mude seus padrões, moda ou forma de ser praticada. Os valores serão o que manterão a prática completa. Sem eles, somos apenas pessoas pulando, escalando, desrespeitando a ‘ordem natural’ das coisas sem nenhum propósito, e realmente não haveria como dizer pras pessoas que nós não treinamos para fugir da polícia ou que parkour é muito mais que simples saltos mortais feitos com um cenário urbano de fundo.

Valores são os princípios que tangem principalmente a moral ou ética que determinada cultura julga boa ou importante (válido frisar que moral e ética não são a mesma coisa, mas não vou diferenciar os dois neste texto). Os valores são o que influenciam nossas prioridades e forma de agir ou de se comportar. Por exemplo: Trapacear em um jogo, roubar, trair ou cometer algum tipo de covardia é considerado antiético ou imoral pois vão contra os valores que a sociedade considera certo. Importante frisar que nem sempre o que é imoral é ilegal, uma pessoa que trai comete um ato imoral, mas não ilegal. Em suma, a ética e moral tem uma relação direta com os valores considerados ideais. Esta reflexão sobre os conceitos de moral e ética são imprescindíveis para um indivíduo que busca uma vida em harmonia com atitudes boas, porém são temas deveras extensos para dissertar por aqui, então vou deixar apenas essa introdução extremamente resumida no post. Mas também deixarei aqui uma ótima leitura para os interessados em se aprofundar no tema neste link.
Contextualizados com os termos e significados, podemos afunilar o tema para o nosso objetivo, parkour (ufa!).




O Parkour, como já discutido neste post, é uma prática que nasceu de diversas influências e, obviamente, trouxe consigo alguns valores dessas outras práticas, como o Método Natural, o parcours Du combattant e artes marciais. Eu vou citar aqui os que eu realmente acredito ser relevante para todas as pessoas que desejam chamar a si mesmo de traceur ou traceuse. Relembrando que não é meu intuito limitar, restringir ou impor os meus valores, e sim fazer uma correspondência (embora subjetiva) de tudo que aprendi nos meus anos de treino e estudo, tentando respeitar ao máximo a visão dos criadores. Enfim, vamos lá:

Humildade: Virtude caracterizada pela consciência das próprias limitações; modéstia, simplicidade. Humildade é assumir, seus direitos e obrigações, erros e culpas  sem resistir,agir diferente disto, é uma arrogância e uma negação da sua origem. (Significados.com)
Característica de pessoas francas, que aceitam a verdade e que têm senso de realidade apurado. Reconhecem seus erros e acertos com a mesma naturalidade.Não subestimam, nem supervalorizam fatos, pessoas, coisas ou a si mesmos! (Dicionárioinformal.com)

Apesar de não ser bem um valor, citei essa virtude pois é imprescindível para um/uma traceur/traceuse que tenha conhecimento de suas próprias limitações, para dessa forma dirigir um treino consciente. Além disso o “saber-se imperfeito” é fundamental para entendermos que por melhores ou mais sábios que sejamos, nós nunca iremos saber e conhecer tudo. Aceitar e entender que não somos melhores e nem piores que ninguém é algo digníssimo e importantíssimo para que possamos sempre nos tornar melhor.

“Pouco conhecimento faz com que as pessoas se sintam orgulhosas. Muito conhecimento, que se sintam humildes. É assim que as espigas sem grãos erguem desdenhosamente a cabeça para o Céu, enquanto que as cheias as baixam para a terra, sua mãe.” – Leonardo da Vinci

Altruísmo: Tendência ou inclinação de natureza instintiva que incita o ser humano à preocupação com o outro e que, não obstante sua atuação espontânea, deve ser aprimorada pela educação positivista, evitando-se assim a ação antagônica dos instintos naturais do egoísmo. (Comte 1798-1857)

Altruísmo é aquilo que diz respeito ao espírito e prontidão de ajudar ao próximo. O traceur/traceuse é alguém que deve estar sempre apto a oferecer seu apoio, seja em um treino ou uma situação corriqueira como ajudar a empurrar um carro ou ajudar uma senhora com as compras. De nada adianta sermos fortes, ágeis e capazes se não formos úteis.

Autocontrole: controle sobre si mesmo; autodomínio, comedimento, equilíbrio. (Wikipédia.com)

No parkour isso é extremamente necessário. Ter controle sobre seus impulsos, seus atos e emoções é importante para uma prática equilibrada. Quem já viu um pico maravilhoso que era uma propriedade particular, ou foi tentar fazer algum movimento só porque tinha um/uma gatinho/gatinha passando, ou sente vontade de se jogar igual um louco só porque tinha uma gopro apontada na sua direção deveria saber o quão perigoso isso é. Escolher quando não se movimentar é talvez uma das partes mais importantes da prática.

“O homem que não sabe dominar os seus instintos, é sempre escravo daqueles que se propõem satisfazê-los.” – Gustave Le Bom

“Na condução das questões humanas não existe lei melhor do que o autocontrole.” – Lao Tse

Autoconhecimento: conhecimento de si mesmo, das próprias características, sentimentos, inclinações etc. (Google.com)

Provavelmente uma das coisas mais importantes e também um dos objetivos mais complexos e difíceis no parkour. A prática de conhecer a si próprio é algo fundamental para sua própria melhora enquanto pessoa. Conhecer seus medos, limites, capacidades, potencial, pontos fortes e fracos é algo que sem dúvida alguma vai te proporcionar uma visão muito mais ampla de si mesmo e de tudo o que te rodeia.

“Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses.” – Sócrates

Respeito: Sentimento positivo que significa ação ou efeito de respeitar, apreço, consideração.
Com respeito não quero dizer apenas o respeito ao próximo, mas também o respeito próprio e o ambiente que te rodeia. Funciona como um tripé: Respeito para com o próximo, autorrespeito e respeito ambiental. Somos animais sociais, então devemos sempre prezar por uma boa relação com os outros praticantes, com os cidadãos que passam por nós enquanto treinamos, com as autoridades policiais e até com os animais do local, para que possamos sempre aproveitar uma boa convivência. O autorrespeito é fundamental pois devemos sempre estar atentos a nossa integridade e a nossos medos. Não sentir medo não significa coragem, significa imprudência. O bom traceur busca sempre ouvir ao seu próprio corpo e saber quando se puxar e quando parar. Respeitar o ambiente fecha o tripé, pois se nós nos utilizamos do ambiente para treinar, nada mais justo que deixa-lo como encontramos. Prezar pela limpeza e integridade do pico é fundamental para podermos continuar treinando ali.

Coragem: Bravura; senso de moral intenso diante dos riscos ou do perigo.

Confiança; força espiritual para ultrapassar uma circunstância difícil.

Perseverança; capacidade de enfrentar algo moralmente árduo.

Hombridade; característica da pessoa de bom caráter. (Dicio.com.br)

A coragem é algo fundamental para qualquer pessoa. No parkour tão importante quanto a capacidade de se movimentar é a capacidade de se sair da zona de conforto. É comum as pessoas acharem que praticantes de parkour não tem medo, e isso é o maior equívoco do mundo. O medo e o bom senso são as maiores ferramentas de segurança do traceur. Mario Sergio Cortella já disse muito bem, “A coragem não é a ausência do medo, é a capacidade de se enfrentar o medo”.

“Os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez.” – Willian Shakespeare.

Resiliência: conceito psicológico emprestado da física, definido como a capacidade de o indivíduo lidar com problemas, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas - choque, estresse etc. - sem entrar em surto psicológico. (Wikipédia)

Capacidade que um indivíduo ou uma população apresenta, após momento de adversidade, conseguindo se adaptar ou evoluir positivamente frente à situação. (Dicionário informal)

A resiliência é basicamente o diferencial entre alguém com uma mente preparada para uma situação adversa e alguém que vive na sua concha de comodismo. Um traceur ou traceuse deve extrapolar isto para todas as áreas de sua vida. A mesma energia utilizada para se sobressair em um percurso de obstáculos físicos deve ser a mesma energia utilizada para lidar com problemas e situações ruins em sua vida. Esta capacidade é bem subjulgada atualmente e provavelmente represente grande parte do que alguém que treine para se tornar forte (no sentido mais amplo da palavra) almeje.

Insatisfação Positiva: Cortella (aaaa como eu amo esse ser gordo e barbudo) chama de insatisfação positiva aquele sentimento que sempre te mostra que ainda temos algo a melhorar. Aquilo que motiva a nossa ambição, que nos faz sempre querer mais e melhor. Essa busca constante na melhora é o que motiva o/a traceur/traceuse a sempre buscar uma nova forma de ser melhor que ontem. Alguma dúvida do quanto isso é importante para nossa vida?
“Perfeição é a busca constante da melhora”

Estes valores e virtudes juntos constituem uma boa referência do que a comunidade, de maneira geral, considera posturas e características corretas de um bom praticante e são as que eu, particularmente, considero essenciais de serem colocadas em pauta para um bom desenvolvimento da prática em seu sentido mais amplo. Obviamente, como eu disse antes, essa lista não é uma lei e em absoluto representam a totalidade de valores da prática. São apenas alguns valores que podem servir de parâmetro para se adquirir uma postura que gere um exemplo e convivência saudável dentro da comunidade do parkour, e da sociedade como um todo.

Poderia ainda falar sobre uma infinidade de características que complementam um bom praticante, como autonomia, foco, determinação, disciplina, confiança, paciência, persistência, criatividade... mas além de esse texto ficar ainda maior, acredito que entraria em méritos tão intrapessoais que esse post ficaria parecendo mais um artigo de auto ajuda do que uma discussão sobre valores.

 Entretanto, eu não poderia de maneira alguma finalizar um texto sobre valores e a essência da prática sem citar os lemas mais conhecidos pelos traceurs e traceuses. Embora trazidos do método natural, esses lemas trazem consigo uma essência e uma crítica tão fortes que mesmo sendo pontuações do início século passado, ainda são discussões bem pertinentes aos modelos atuais de Educação Física. Mas como o estudo da obra de Hebérts é deveras extenso, aconselho que pesquisem por conta própria para aprofundarem-se sobre o assunto. Porém deixarei abaixo boas referências de estudo para os interessados. Então de uma forma bem resumida, pois não quero prolongar-me muito mais

“Ser Forte para Ser Útil”
Hébert defende em sua obra que o corpo humano, mais do que forte, deve ser funcional. Segundo ele você deve estar apto a muito mais do que simplesmente levantar cargas repetidas vezes para melhorar a estética corporal. Você deve ser forte sim para levantar e carregar cargas assim como arremessá-las, mas também deve ser capaz de andar, correr, escalar, quadrupejar, equilibrar-se sobre diferentes superfícies, nadar, saltar e defender-se. Deste ponto de vista, treinar unicamente pela estética torna-se algo fútil, sem utilidade.
O corpo do traceur deve ser capaz de realizar todas as chamadas “10 habilidades naturais” citadas por Hébert, em função de desenvolver seu corpo de forma funcional e útil. Muito mais do que simplesmente preparar o corpo, Hébert diz que deve-se fomentar um forte senso moral de altruísmo (que já citamos anteriormente). Dessa forma você se torna “forte” e “útil”.

Resumidamente ‘Ser forte pra ser útil’ quer dizer: De que adianta você ter um corpo bonito se ele não é funcional? E de que adianta ser forte se você não usa essa força para ajudar ao próximo? Basicamente esse lema, dentro do parkour, questiona se o preparo que ganhou está sendo utilizado para fins egoístas ou fúteis.
O Beto Brandão, criador de conteúdo do ‘Papo de homem’ e do ‘De cima do muro’ fala muito bem sobre isto neste link e neste link

“Ser e Durar”

Este lema defende justamente o respeito para com o próprio corpo (que já foi citado acima).  A prática do parkour pode ser uma prática perigosa se for realizada de maneira imprudente e negligente, então é sempre necessário frisar valores que defendam a integridade física e mental do praticante. Dessa forma devemos ‘usar e não abusar’ de nossos corpos, afinal nosso corpo é o principal veículo para a ultrapassagem de obstáculos. Um carro quebrado não leva ninguém a lugar nenhum. Então é necessário sempre lembrar que devemos cuidar de nossos corpos para podermos ser ‘úteis’ por muitos anos. Ninguém quer treinar apenas 2 anos, se machucar e passar a vida toda com dores por um segundo de inconsequência ou despreparo. Este lema existe para lembrarmos que devemos ‘durar’ na prática. Essa responsabilidade de ‘cuidar de si próprio’ para treinar sempre é importantíssima. Devemos ser cautelosos, respeitar nossos corpos para que ele possa ‘durar’ mais. Claro que isso não tem a ver com ‘viver por mais tempo’, e sim com prolongar a nossa vida útil dentro do parkour. Não adianta se jogar para um drop de 5 metros hoje, se amanhã você não conseguir andar. Então acredito que ‘Ser e Durar’ seja muito bem representado por um estado de sustentabilidade com o próprio corpo, ou seja, treinar hoje, para poder continuar treinando sempre. Para isso precisamos de cautela, bom senso e preparo. Como diz Cortella: “O corpo é uma coisa tão legal que se cuidarmos dele direitinho, ele dura a vida toda”.

O Eltiene Soares elaborou uma pesquisa interessantíssima sobre o tema e publicou em forma de artigo. É uma boa leitura, quem se interessar pode acessá-la neste link.

Nunca é demais reforçar que eu não sou o dono da verdade e quero que se sintam livres pra criticar e debater sobre tudo o que foi exposto, afinal, eu também erro.

Valores são algo que já existem em uma comunidade, independente de você conhecê-los ou não, de pratica-los ou não. Os valores representam os ideais que a sociedade considera corretos, e isso já faz parte da educação de uma pessoa desde que ela nasce. O objetivo do texto não foi querer dizer que se você não quer seguir esses valores, você não é um traceur. Quis dizer que se quiser se aventurar no parkour é interessante que conheça os valores que toda comunidade preza para gerar uma boa relação com todos.

E, FINALMENTE, chegamos ao final desta postagem, espero que isso ajude aos novos e antigos praticantes de alguma forma, seja com um novo aprendizado, seja pelo estímulo de relembrar e refletir sobre esses aspectos. A prática de bons valores sempre ajudará a fazer com que o parkour e seus adeptos cresçam e se enobreçam cada vez mais. Sempre existirão traceurs hipócritas, falsos profetas que se baseiam numa ideologia que não seguem para vender uma pessoa que não são com valores que não respeitam, mas desejo a todos sabedoria para não seguirem tal exemplo.

Qualquer dúvida, crítica ou comentário, por favor sintam-se a vontade para deixar seu ponto de vista abaixo. Esse ambiente é nosso.

Bons treinos.

Atenciosamente, Um Traceur.


Agradecimentos especiais a Marina Neves, ao Duddu Rocha do DCM e a Millena Barbosa (Hyna) da Flowing pela ajuda com o Texto.

Referências:
http://www.significados.com.br/
http://www.dicionárioinformal.com.br/
http://www.dicio.com.br.br/


sexta-feira, 24 de abril de 2015

#1 - O Que é Parkour?

Querido diário, hoje irei começar o primeiro dia de postagens oficiais sobre o mundo do parkour na minha ótica e perspectiva.
Nada mais justo que começar essa caminhada refletindo e elucidando uma das perguntas mais frequentes que ouço das pessoas que não conhecem o que eu faço: “Afinal, o que é parkour?”.
Responder a essa pergunta é simples e ao mesmo tempo complexo, afinal, numa realidade onde a maioria dos vídeos (de parkour) que viralizam por aí mostram justamente o oposto do que pregam os valores da prática, mostrar para um leigo do que se trata a disciplina por trás da movimentação torna-se uma tarefa verdadeiramente desafiadora.
Para responder esta pergunta eu tentarei seguir uma linha que vá de acordo com as principais referências internacionais do parkour hoje, de modo a respeitar a visão dos próprios criadores e a abranger ao máximo toda a potencialidade que a prática desenvolveu com o tempo. Para isto, tentarei usar aqui o máximo de referências científicas relacionadas com o parkour, entrevistas com os criadores e parte da teoria passada durante o curso do A.D.A.P.T. Também, não usarei aqui nenhuma referência que não tenha plena confiança em seu conteúdo e veracidade.
A partir de agora muitos mitos que são repetidos por muito tempo pelos praticantes serão discutidos, e com certeza quem não faz ideia do que é parkour terá uma base mais aprofundada para começar a entender a disciplina, além de entender que a prática é muito mais complexa do que é mostrado na maior parte dos vídeos e filmes atualmente. Lembrando que o objetivo deste texto não é o de aprofundar-me na história do parkour, e sim focar na explicação do que se trata a atividade. Obviamente me basearei em alguns pontos específicos da linha do tempo da disciplina, mas sem atentar especificamente na história em si (isso ficará para um outro post). Sem mais delongas.
Julie Angels em sua tese de doutorado explica parkour/l’art du deplacement/freerunning como: “ Um método de treinamento físico e uma maneira particular de se pensar sobre movimentação e um mapeamento espacial criativo. É uma atividade física e mental que envolve apenas a utilização do corpo para superar obstáculos (físicos e mentais) em um percurso. Isso pode envolver correr, escalar, vaultear*, saltar, se equilibrar, ou qualquer outra forma física de se mover de um ponto a outro. Alguns simplificam isso afirmando se tratar de encontrar uma forma de sair de um ponto A e se chegar a um ponto B. É um método que envolve aprender a superar seus medos e limitações através do aprimoramento da relação entre corpo e mente e da coordenação de sua própria movimentação em qualquer terreno.”.

A definição de Angels é uma definição bastante completa da prática.
Quem é de fora do mundo do parkour provavelmente está se perguntando: “Mas l’art Du deplacement? Freerunning? WTF?”
Apesar de essa diferenciação na nomenclatura ser completamente inútil, é paradoxalmente necessário contextualizar os leigos sobre essas diferentes nomenclaturas e o que significam. Justamente porque neste ponto, muitos praticantes já devem estar tendo comichões e coçadinhas no corpo inteiro quando viram que Parkour/l’art Du deplacement/freeruning são explicados como a mesma coisa. Pois é, Parkour, l’art du deplacement e Freerunning são, na realidade, a mesma prática, aplicadas como expressões diferentes em situações e tempos diferentes. Já explicarei o porque.

Antes de avançar, é necessária uma pontuação. É comum associar a criação da prática unicamente ao Leito, digo, David Belle. Esse é o erro mais comum e provavelmente o mais crítico ao se interpretar a história do parkour. A atividade foi criada por um grupo de pessoas em conjunto que tiveram papéis importantíssimos para o desenvolvimento do que conhecemos hoje como Parkour. Essas pessoas formavam um grupo multiétnico que seria conhecido posteriormente como Yamakasi. Faziam parte dessa “formação original”: Châu Belle-Dinh, Williams Belle, David Belle, Guylain N'Guba-Boyeke, Malik Diouf, Sébastien Foucan, Yann Hnautra, Charles Perrière e Laurent Piemontesi.
A prática do parkour originalmente, não era chamada por um nome, se tratava basicamente de brincadeiras e desafios feitos pelo grupo de amigos nos subúrbios da capital Francesa, mais especificamente Evry, Sarcelles e Lisses. Com o tempo todas essas brincadeiras e desafios foram amadurecendo juntamente a seus envolvidos . Os treinos foram ganharam mais seriedade, profundidade, sentido e aos poucos aquilo foi tornando-se o método de treino e disciplina adotada por eles (para mais detalhes leiam o trabalho de Julie Angels na íntegra). Os garotos foram tornando-se jovens com uma capacidade de movimentação impressionante, sendo reconhecidos pelos moradores da região. Logo surgiu a oportunidade de aparecerem na televisão, mais especificamente em Stad  2 (um canal de televisão francês), com a oportunidade veio também a necessidade de dar ao que faziam um nome (até então a prática era chamada simplesmente por parcours , palavra francesa que quer dizer ‘percurso’). Foi então que em 1997, graças a oportunidade de aparecer na televisão, o grupo achou necessário uma forma de se referir a prática. Sebastien Foucan então sugeriu o nome “l’art Du deplacement”, ou em português, “arte do deslocamento”.  O grupo se identificou com o nome mas acabou se separando depois disso. David Belle, nesse mesmo ano, por uma questão de marketing adotou o nome “Parkour”, uma referência ao “parcours Du combatant” que era praticada por seu pai (e que discutiremos mais em um outro DDT) e um segundo nome para a mesma prática, fazendo desta uma marca, algo pelo qual Belle viria ser reconhecido como “dono” posteriormente e faria uma ligação direta com o que aprendera com seu pai, Raymond. Mais tarde, Sebastian Foucan durante o documentário “Jump London” no canal inglês Channel 4 trás a tona um terceiro nome para a mesma prática, Freerunning, nome este que desencadearia uma interpretação mundial totalmente distorcida da real intenção de Foucan. Seu objetivo era apenas mostrar ao público inglês a sua interpretação da mesma prática que sempre treinou e graças a sugestão de Guillame Pelletier, acreditou que um nome em inglês resultaria num maior apelo com o público britânico. Mas, como o ser humano é um bicho idiota, cada um interpretou as 3 nomenclaturas de uma forma, e criou-se uma errônea separação entre as práticas. Hoje sabe-se que elas representam a mesma essência e os mesmos valores e portanto são apenas nomenclaturas diferentes adotadas em contextos diferentes para se dirigir a mesma atividade. Nós costumamos utilizar o termo “Parkour” como mais aceito apenas para facilitar a comunicação. (O Bruno Peixoto, diretor da ParkourGenerations Brasil, explica muito melhor toda essa confusão neste vídeo)

A própria Julie Angels explora os conceitos de cada nomenclatura em seu trabalho e afirma não parecer haver distinção entre elas. “Eu irei me referir como parcours, l’art du deplacement, parkour e freerunning durante a tese dependendo do contexto histórico e das informações vindas dos informantes. [...] Eu acredito ser importante a distinção entre as respectivas disciplinas como isso aprofunda as identidades dos fundadores, mesmo que as práticas pareçam ser a mesma coisa para um leigo ou mesmo na perspectiva de um traceur” (Angels, J. Ciné Parkour:a cinematic and theoretical contribution to the understanding of the practiceof parkour. Página 15)
Angels claramente deixa claro neste parágrafo que a importância de diferenciar as práticas se justifica apenas para uma abordagem histórica, e que a diferenciação se dá pelas 'identidades dos criadores', ou seja, ego. Claro que cada um dos criadores queria a sua 'fatia do bolo', e gostariam de ser reconhecidos pela criação de algo, então, no primeiro desentendimento que aconteceu (no caso, por conta do nome) cada um pegou suas coisas e buscou reconhecimento da sua própria maneira. Porém, essa divisão por ego, não descaracteriza a mesma essência, os mesmos valores e a mesma disciplina praticada por todos, toda esta zona teve início apenas por orgulho.

Portanto,  Pk/Fr/Add, representam a mesma disciplina, com os mesmos valores e a mesma essência. Nós costumamos adotar a nomenclatura “Parkour” para se referir a prática para facilitar a comunicação (E isso, inclusive é passado durante o curso de formação de instrutores da Parkour Generations, o ADAPT ).

Devidamente contextualizados com os termos, vamos prosseguir.

O Parkour traz na sua essência, influências de várias modalidades diferentes. Possui técnicas ginásticas de fortalecimento, padrões de movimentação parecidos com o atletismo, níveis de desafios encontrados na escalada livre, autodisciplina e concentração das artes marciais, semelhanças indubitáveis do parcours Du combattant e por aí vai. Inclusive os criadores eram praticantes de diversas modalidades diferentes, como mostra o próprio Ciné Parkour de Angel e entrevistas com os criadores.

Basicamente o Parkour utiliza-se de uma série de técnicas e padrões de movimentação aplicadas em conjunto para movimentar-se no ambiente utilizando o próprio corpo como veículo para transpor obstáculos, explorando o mundo de maneira desafiadora e divertida.

Trabalhamos com a ideia de que podemos utilizar nosso corpo de diversas formas diferentes a fim de fortalecê-lo, aprender a controlá-lo, desafiá-lo e dessa maneira sair da zona de conforto, buscando continuamente uma forma de ser e fazer melhor.

Quando falamos da utilização do corpo de diversas maneiras e se tornar melhor com isso, uma boa forma de se orientar é através do trabalho de George Hebérts, o “Methode Naturelle”. Em uma viagem a África ele observou tribos indígenas e como as pessoas nestas tribos tinham corpos fortes, resistentes e úteis para a comunidade em que viviam. Se espantou em observar que apesar de serem extremamente fortes, eles não passavam por nenhuma forma específica de treinamento, não haviam academias e nem nada do tipo. Seu único instrutor era apenas seu dia-a-dia na natureza. Em seu trabalho Hebérts defende que um corpo útil deve ser forte. Útil em uma situação de emergência, útil sendo altruísta, útil sendo autônomo, útil sendo eficiente e capaz... enfim. Daí então vem o principal lema de sua filosofia: “Etre fort per Etre utile” ou, em português “Ser forte para ser útil”. Este se tornou um dos lemas mais fortes dentro do parkour, sendo levados a sério por muitos em seus treinos. Heberts então, através de suas observações dividiu os padrões naturais de movimentos humanos em 10 famílias. São elas:



·         Andar
·         Correr
·         Saltar
·         Escalar
·         Quadrupejar
·         Equilibrar
·         Levantar e carregar cargas
·         Arremessar cargas
·         Se defender
·         Nadar



Esta classificação norteia bastante a prática do parkour, pois como “utilização dos padrões de movimentação” queremos dizer exatamente isto.
Nós corremos, saltamos, escalamos, nos equilibramos, rolamos, rastejamos e utilizamos todo o tipo de movimentação ao nosso alcance para ultrapassar obstáculos e nos tornarmos fortes.

Charles Moreland, da Rochester Pk de Nova York, em uma palestra para a TED fala muito sobre os comodismos contemporâneos. Vivemos hoje numa sociedade acomodada a rotinas. Acordar, sentar pra comer, transitar num carro ou ônibus, trabalhar sentado, sentar pra descansar e assistir televisão ou jogar videogame e deitar pra dormir. Comparando isso as variedades de movimentação idealizadas por Hebérts, quantos destes padrões deixamos de lado tendo em vista as facilidades tecnológicas e ergonômicas da vida moderna?
O Parkour traz a ideia de que somos capazes de sair da zona de conforto imposta pela sociedade em que vivemos atualmente. Com partes remanescentes da filosofia autônoma do Methode Naturrelle, parkour prega uma constante evolução em todos os aspectos do desenvolvimento humano, com o objetivo de se tornar uma pessoa autônoma, independente e livre o suficiente para saber fazer suas escolhas baseadas em valores como respeito, honra e humildade. Apesar de ter citado aqui os termos “liberdade” e os “valores” esses dois temas são deveras complexos, e deixaremos isso para um outro post.

Hoje em dia, o parkour foi difundido no solo de várias nações ao redor do mundo. Obviamente isto fez com que cada cultura imprimisse parte de sua cultura na prática, o que fez com que ela se desenvolvesse de uma forma positiva e negativa ao mesmo tempo, explicarei o porque.
 Se pegarmos Traceurs aleatórios de cada país do mundo e observarmos atentamente a movimentação de cada um, você notará que, apesar de todos estarem praticando a mesma atividade, cada um se expressa de uma forma particularmente única. Essa diferença, na minha humilde opinião é melhor visualizada principalmente na movimentação de Russos, Franceses e Ingleses... cada um pende para uma forma de movimentação única, que eu realmente acredito ser a impressão da própria personalidade cultural dentro da prática. Eu não tenho absolutamente nada científico que sustente essa minha teoria, mas adoraria ver um debate ou uma iniciativa acadêmica abordando este tema. Em todo caso, visto que o parkour se enraizou de forma subjetiva em cada lugar, o desenvolvimento da prática ao passar dos anos também passou a abranger uma imensidão de padrões e formas de se interpretar a atividade. Isso é:
1 – Positivo, pois isso fez com que o Parkour se enriquecesse ainda mais com visões, filosofias e motivações diferentes. Dessa forma cada cultura agregou algo para a atividade e cada pequena adição fez com que o parkour desenvolvesse uma potencialidade maior e maior.
2 – Negativo, pois juntamente a propagação absurda que a prática obteve, veio também a diluição de valores essenciais do Parkour, como respeito ao próprio corpo e importância do fortalecimento e de um treino consciente, valores que em geral podem ser resumidos em “Ser e Durar” (Outro lema do Método Natural adotado pelo Parkour que prega que deve-se sempre treinar pensando em respeitar seu corpo para treinar sempre, afinal, de nada adianta um drop de 6 metros de altura hoje, se amanhã vai estar com dores e nem aguentando andar, que dirá treinar, em todo caso este é um tema que merece uma atenção particular, e trataremos disso num próximo post). Como prova disso temos hoje vários iniciantes querendo treinar parkour só pra aprender a virar mortal, só pra gravar vídeos ou impressionar as outras pessoas, isso não apenas oferece perigo para o próprio praticante como passa a ideia errada do que se trata o parkour. O sempre gostoso Chris Rowatt, da Parkour Generations, fala mais especificamente sobre esse tema aqui.
Enfim, atualmente o parkour é praticado de uma forma bem diferente do que era originalmente, a prática evoluiu e hoje temos uma visão bem ampla da modalidade, que envolve desde interpretações artísticas com performances impressionantes até autodisciplinas regradas focadas em ajudar o próximo e tornar-se melhor.

Conceituar o Parkour atualmente é uma tarefa bem desafiadora, mesmo para os praticantes mais experientes. Ainda não existe uma linha de pensamento que chegue a um consenso sobre o real conceito de Parkour. Por vezes ele é citado como um esporte, arte, disciplina ou filosofia. A falta de estudos aprofundados na área torna a busca pelo real conceito do Parkour extremamente subjetiva. Não é o objetivo deste post o estabelecimento de um conceito predominante. Aqui direi apenas que você pode entender Parkour como quiser, menos como esporte.
Barbanti cita que para uma atividade ser caracterizada como esporte, esta deve acontecer sobre condições específicas. “o esporte é caracterizado por alguma forma de competição que ocorre sob condições formais e organizadas.”. Parkour é na sua essência uma atividade não competitiva, como cita Foucan, em seu livro Find Your Way, David Belle e milhares de outros tracers ao redor do mundo. “Creio que o objetivo principal do Parkour seja nos tornarmos completamente autônomos em nossas vidas.”, “Treinamos para quando encontrarmos um problema, sermos capazes de enfrentá-lo” (citações de David Belle na entrevista “Eu salto de telhado em telhado”). Barbanti cita ainda que “o fenômeno esporte envolve uma atividade física competitiva que é institucionalizada.”. Não existe ainda uma federação internacional que fiscalize a prática do Parkour a nível institucional, e que estabeleça padrões ou regras para a prática da atividade. Então em resumo, seguindo a linha de pensamento de Barbanti, Parkour não é institucionalizado, não acontece sob um conjunto de regras, portanto não há maneira de se haver competição. E já que o Parkour não acontece sob as condições de um esporte, não pode ser considerado um esporte, pelo menos por enquanto.
Portanto meu amiguinho,não, parkour ainda não é um esporte, porém nada impede que venha a se tornar um dia.

Pra finalizar esse post IMENSO, vou deixar aqui uma definição que eu particularmente acho bem completa.

Parkour é uma atividade que consiste na utilização de técnicas corporais como correr, saltar, escalar, rolar e se equilibrar para explorar o ambiente de uma forma desafiadora e divertida. Trata-se do processo de preparo que tem por objetivo aprender a lidar com obstáculos de natureza física (muros, corrimãos, lixeiras, bancos, arvores...) e mental (medo, insegurança, autoestima e etc).

Além de ter lido esse texto e estudar em outras referências também, uma boa forma de entender o que é realmente Parkour é simplesmente praticando. Então se você aí, leu até aqui e ainda não conseguiu entender muito bem, sem problemas, tente começar. Saia um pouco da sua zona de conforto e venha aprender algo novo, o máximo que pode acontecer é você não gostar.

 Poderia ainda escrever por horas aqui até que isto virasse um livro, mas vou parar por aqui. Espero ter contribuído em algo com você que teve a paciência de ler até aqui. Sinta-se a vontade para discordar, debater, criticar e construir conhecimento.

Bons treinos .

PS: Agradecimentos especiais ao Duddu, do Parkour Aracajú e do DCM pela ajuda com o texto.

Atenciosamente:

Um Traceur.